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A paz é a gente que faz! Por: Cláudio Márcio Rebouças da Silva

 
Lá na escola não contaram nada. Fizeram questão de esconder. Hoje eles passam como filhos do Deus bom.
A gente vai passando como filhos do mau” (Edsom Gomes)
 
Por: Cláudio Márcio Rebouças da Silva¹
 
Vez por outra fico pensando nos muitos desafios que me cercam, ou seja, como ser cristão reformado ecumênico e defensor do diálogo inter-religioso no recôncavo baiano? Essa é uma questão extremamente desafiadora para aqueles e aquelas que tentam desenvolver uma espiritualidade diaconal libertadora-afetuosa cheia de potência de vida não apenas nos espaços religiosos, mas, nas esquinas e praças da cidade, isto é, no nos (des)caminhos percorridos cotidianamente.
 
Nasci e tenho vivido em Muritiba-BA. Aqui, nesse pedaço de chão, a relação entre Igreja e Sociedade me atraem demasiadamente, assim, fiz teologia e ciências sociais. Tenho apendido com a história de vida de homens e mulheres, com instituições e com livros a agir contra toda estrutura de morte que explora, estigmatiza e tenta controlar e silenciar corpos afro-indígenas no seu processo histórico.
 
Aprendi na fé que professo que “se vocês de fato obedecerem à lei do Reino encontrada na Escritura que diz: ‘ame o seu próximo como a si mesmo’, estarão agindo corretamente” (Tiago 2:8). De fato, “as estruturas eclesiásticas não são sagradas” como apontou o sociólogo Waldo César, logo, não devemos nos esquecer da advertência de Leonardo Boff ao abalizar: “o que há de mais sagrado do que a pessoa humana? O sagrado da pessoa é mais importante que o sagrado dos objetos e espaços sagrados” (BOFF, 2010, p.63).
 
Com efeito, toda vida é sagrada e não apenas a de alguns e algumas. Na realidade, minha indignação é sobre a espiritualidade cristã exercida por alguns fiéis que leem a bíblia muitas horas por dia e oram com “relógio na mão” como se existisse um cronômetro celestial fiscalizado por anjos que fazem relatórios no seu cotidiano. Confesso com muita tristeza que esse modelo de espiritualidade é vazio e fétido, ou seja, é alienante e, por vezes, perverso e desumanizador.
 
Hipócritas! Possuem um projeto de poder político bélico e diz que essa é a vontade de Deus? Fazem esquemas de propina e articulações com milícias e diz que é a vontade de Deus? Mandam matar, se prostituem, desviam milhões dos cofres públicos, fazem lavagem de dinheiro e diz ser a vontade de Deus? Reforçam desigualdades sociais em tom de meritocracia e diz que essa é a vontade de Deus? Defendem o genocídio da juventude negra e o racismo estrutural religioso e diz que essa é a vontade de Deus? Incendeiam terreiros da religião Afro-brasileira e diz que essa é a vontade de Deus? Violentam mulheres e matam homossexuais e diz que essa é a vontade de Deus?
 
Confesso, cansei desses missionários do ódio e coveiros da esperança. Mercenários da fé e ilusionistas da moralidade. Os lábios dessas lideranças pronunciam o nome de Deus e suas práticas revelam mamon. Falam de amor, mas semeiam discórdia. Acredito e me inspiro nas ações proféticas, maduras e corajosas na vida de homens e mulheres que compõem instituições como: Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC); Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE); Comissão Ecumênica dos Direitos da Terra (CEDITER); Centro de Estudos Bíblicos (CEBI); Conselho Ecumênico Baiano de Igrejas Cristãs (CEBIC) para citar algumas.
 
Ora, essa última lançou em janeiro de 2021 a campanha em Respeito à Diversidade Religiosa – Pessoas de outras religiões importam – a Paz é a Gente que Faz!  Uma experiência profética e comprometida com o anúncio de uma outra realidade possível, pois, para além de marcar um lugar nas redes sociais com esses vídeos  produzidos na campanha, o CEBIC tem estabelecido um ambiente de diálogo e partilha de sonhos e lutas em solo baiano. Essa é apenas uma experiência de tantas que ocorrem no Brasil e que precisam ser articuladas e multiplicadas a partir das especificidades de cada grupo, de cada contexto. O setor ecumênico progressista existe e precisa continuar disputando narrativas em defesa dos direitos humanos para humanos diversos.
 
Nesse sentido, diante de tanto negacionismo científico e das mazelas sociais, suspeito que seja necessário observar o debate feito por Franzt Fanon a respeito da não inserção do sujeito negro em um paradigma societário que é branco, colonial, europeu e cristão. Na sua obra Os Condenados da Terra (1979), ele problematiza questões de classe, de raça, da cultura nacional e da violência, isto é, sinaliza como a linguagem do colonizador-branco produziu consequências psíquicas ao moldar o ethos dos colonizados negros, uma vez que, como abaliza o próprio Fanon: “é o colonizador quem tem feito e continua a fazer o colonizado. O colonizador tira sua verdade, isto é, seus bens, do sistema colonial (FANON, 1979, p. 26). 
 
Desta maneira, o colonizador repete tantas vezes e de tantas formas que o colonizado é sujo, selvagem, criminoso, etc., que gera dúvidas no próprio caráter do colonizado, sentindo-se culpado e inferiorizado pelo paradigma branco e europeu, ou seja, “a civilização branca, a cultura burguesa, impuseram ao negro um desvio existencial” (FANON, 2008, p.31).
 
No entanto, sabe-se que a relação do colonizado com o colonizador é acentuada por formas de dominação por um lado e de resistências do outro, assim sendo, o discurso e ethos do “civilizado” é construído como legítimo e superior em detrimento do outro. Dito de outra forma: um padrão é estabelecido como normativo e sabe-se que este paradigma não é o do sujeito negro, uma vez que, por mais que os sujeitos negros tenham acesso a esse modo de viver do  colonizador, em situações diversas, a cor da pele será um marcador social de exclusão e estigmatização.
 
Devido ao seu processo histórico de colonização e de escravidão, a máscara do Diabo foi colocada na face do indígena e do(a) negro(a). Logo, 
 
A figura do Diabo foi trazida pelos colonizadores e projetada, identificada, com personagens das culturas indígena e africana em solo brasileiro. Duas personagens que parecem ter se prestado a este processo de demonização por parte dos brancos portugueses são a Caipora, um espírito das matas de matriz indígena, e o Exú, um espírito ambíguo da cultura africana (OLIVA, 2007, p. 75).
 
De fato, o racismo religioso precisa ser superado através de estudo, vivência, respeito, alteridade, empatia, e, não menos, sensibilidade para abrir mão de privilégios. A tríade cristão, branco e hetero oferece um espaço de poder em nossa sociedade. Suspeito então que é possível, por exemplo, perceber a força das religiões africanas com a ancestralidade (valorizando os mais idosos); o lugar da mulher como liderança; a relação com a terra e com as ervas-raízes; o acolhimento de homens e mulheres homossexuais; a dimensão corpórea que também é culto em meio a instrumentos, cheiros e sabores. Evidentemente que isso não significa harmonização sem conflitos nas relações sociais estabelecidas nestes grupos, uma vez que, isso não existe em lugar algum. O campo cristão católico ou protestante que o diga, não?
 
Encontramos na realidade brasileira expressões de fé, compaixão e serviço como luzeiros de esperança. “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5.9). Assim, devemos olhar para esses homens e essas mulheres de boa vontade dispostos(as) a gerar uma espiritualidade que derruba muros e assume o mutirão das pontes nas comunidades eclesiásticas, nos centros espíritas, nos terreiros de candomblé, nas mesquitas islâmicas, nas sinagogas judaicas, etc.
 
Neste Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa (racismo estrutural religioso), que os cristãos e as cristãs possam rememorar a narrativa bíblica ao assinalar: “nisto conhecemos o que é o amor: Jesus Cristo deu a sua vida por nós, e devemos dar a nossa vida por nossos irmãos” (1 João 3:16). Que haja liberdade de culto e se faça ouvir os sons dos atabaques. Que nenhuma casa de reza seja incendiada por religiosos fanáticos e perversos. Que a religião do outro não seja demonizada e estigmatizada. Que a face do Deus cristão também seja de uma mulher negra. Que na mesa da fraternidade a identidade e a diferença sejam faces da mesma moeda.
 
Encerro este texto com a ORAÇÃO AO DEUS BRASILEIRO do Rev. João Dias de Araújo ao dizer:
 
Javé! Tupã! Olorum! 
Não és um Deus qualquer um;
Pois és o Deus brasileiro:
Retinto, branco e trigueiro.
 
Javé! Olorum! Tupã!
Deus da noite e da manhã:
Tu és o Deus brasileiro:
Moreno, branco e trigueiro,
Em templo, taba ou terreiro,
Em campos, morro ou favelas
Onde alguém acende velas.
 
Olorum! Tupã! Javé!
Tu és o Deus brasileiro
Que segues trilhas de fé
Em grutas e monastérios;
Em casa e cemitérios,
Tu és o deus brasileiro,
Retinto, branco e trigueiro!
 
És hebreu, afro ou tupi
Do Oiapoque ao Chuí.
Do sertão ao litoral,
Da caatinga ao pantanal.
Nossos louvores serão
Pelas águas, pelo ar,
Como o sabiá no sertão,
Como a gaivota no mar.
(ARAÚJO, 2012, p. 73-74)
 
¹Cláudio Márcio Rebouças da Silva é pastor na IPU de Muritiba (cidade serrana do recôncavo baiano).
 
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REFERÊNCIAS 
 
ARAÚJO, João Dias. O Cristo brasileiro: a teologia do povo. São Paulo: ASTE, 2012.
BOFF, Leonardo. Igreja: Carisma e Poder. 2° ed. Rio de Janeiro. Record, 2010.  
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. 2º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. 
__________. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008.
OLIVA, A. dos Santos. A História do Diabo no Brasil. São Paulo, Fonte Editorial, 2007.
 
Foto: Pixabay / Selo de Koinonia
 
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