A instrumentalização da fé, da figura de Deus e de símbolos religiosos como imagens e personagens da Bíblia está em alta no Brasil.
Coisa antiga, o uso da fé com vistas à realização de objetivos pessoais ou de grupos, com base em projetos econômicos e/ou políticos, ganha força numa atmosfera social presente e muitos se movem cada vez mais pela emoção.
Tais respostas são conteúdo farto da cultura da autoajuda. Ela se encontra na ampla oferta de cursos e palestras presenciais e midiatizadas, dos modernamente denominados “coaches”.
Tanto dentro quanto fora dos espaços religiosos, o indivíduo, com o seu poder e esforço próprios, é quem “determina” e faz acontecer ou que faz Deus agir.
Nesta lógica intimista e individualista soma-se o descarte do que desagrada ou se tem aversão. Seja um produto, ainda que recém-comprado, sejam relacionamentos digitais, que com um clique estão bloqueados ou excluídos, seja o participante do reality show, seja quem vive, pensa ou age diferentemente. Somos todos convidados a descartar, excluir, eliminar, e nosso problema com a coisa ou o outro está resolvido.
No que diz respeito à fé religiosa, sai fortalecida a compreensão de que deus (com minúsculas propositalmente) age a partir do que os fiéis desejam que aconteça (a confissão positiva, a determinação do “tá amarrado” ou “deus no controle”).
É neste sentido que deus se torna o aniquilador do Mal que se materializa em tudo aquilo que desagrada e provoca aversão aos fiéis. Esta lógica tem sido insistentemente orientada a partir de lideranças que as propagam nas mídias tradicionais e digitais, por pregações, talk shows e músicas gospel.
Não à toa nos deparamos com gente identificada como cristã que apoia políticas de segurança pública baseadas na eliminação de seres humanos (livre porte de armas, uso de drones para “acertar na cabeça”, pena de morte por lei ou pela liberação para policiais matarem). Ações humanizantes que incluam e recuperem infratores não cabem nesta compreensão de fé.
Não por acaso identificamos católicos e evangélicos, lideranças ou simples participantes, que criam e/ou propagam conteúdo falso e mentiroso em pregações religiosas ou mídias sociais.
Em nome da lógica da fé imediatista, individualista e aniquiladora de inimigos, mente-se e apoia-se quem mente. A mentira é considerada apenas um meio que justifica a defesa de deus, ameaçado pelas diferenças. O que importa é levar a aversão adiante.
Dias atrás meu marido alertou um evangélico, com formação superior, com quem se relaciona no Facebook, sobre um conteúdo comprovadamente falso, mentiroso, que havia publicado. Com paciência mostrou a verdade no caso e convidou o conhecido a apagar a postagem. A resposta foi: “É mentira, mas o pessoal tem que saber disto”. Não parece incrível?!
Não é gratuito encontrarmos católicos e evangélicos dos mais diferentes perfis celebrarem que o ex-deputado Jean Willys tenha que sair em autoexílio após receber ameaças de morte ou que afirmem que deus matou o jornalista Ricardo Boechat numa queda de helicóptero.
Na lógica da aniquilação do que provoca aversão e ódio, tanto Willys quanto Boechat merecem morrer, pois são considerados inimigos de deus, ao se colocarem criticamente contra práticas ou lideranças religiosas. Diferenças não cabem nesta compreensão.
Com esta forma de interpretar o mundo, a religião se torna a resposta ao desejo de se eliminar os desafetos, os diferentes, os considerados impuros e limpar o mundo para a realização do que é certo e puro.
Os pecados do fanatismo
O israelense, escritor e ativista pela paz com justiça entre Israel e Palestina, Amós Oz, falecido em dezembro passado, sempre afirmou que a aversão é um dos componentes do fanatismo.
Ele alertava que hoje em dia fala-se muito dos pecados do ódio, mas seria muito melhor e mais correto usar a expressão “os pecados do fanatismo”.
Para Oz, vivemos uma onda de ódio ao outro, ao que pensa e age diferente, que é um fanatismo crescente. Fanáticos mentem e/ou desejam o mal a outros porque só conseguem enxergar a sua própria verdade, construída para justificar a sua aversão.
É visível no presente uma onda de fanáticos na religião e na política. Alguns se encontram nas duas frentes.
Para quem instrumentaliza Deus com o seu fanatismo, vale lembrar a palavra do profeta Isaías na Bíblia: “… Os meus pensamentos não são os pensamentos de vocês nem os seus caminhos são os meus caminhos, diz o Senhor. Assim como os céus são mais altos do que a terra, também os meus caminhos são mais altos do que os seus caminhos e os meus pensamentos mais altos do que os seus pensamentos” (58.8-9).
Deus não pode ser feito à nossa imagem e semelhança. Deus é maior e mais do que tudo o que somos e temos. A humanidade de Deus, materializada em Jesus de Nazaré, referência dos cristãos, que foi todo amor, misericórdia, paz, respeito, inclusão, despojamento, acaba incomodando muita gente.
Preferem um deus autoritário, dominador, general de exércitos que confere lauréis e castigos… Que bom que Jesus mostrou que esse deus não existe.
Fonte: Carta Capital
Texto: Magali do Nascimento Cunha
Imagem: Reprodução / Pixabay