![](/portal/images/2021/rebibb.jpg)
Reconheço minha dificuldade em escrever sobre a Reforma Protestante, haja vista o modo preconceituoso no qual fui criado. Meu contexto pentecostal era muito anticatólico e o preconceito beirava à intolerância religiosa – o que dificultava uma elaboração crítica mais acurada e ainda mais autocrítica. O problema é que, nesse ambiente, praticamente se lida com a história da religião como se por 1.300 anos não tivesse havido um verdadeiro cristianismo.
Hoje, um pouco mais familiarizado com história e o desenvolvimento do cristianismo, não tenho dificuldades em tensionar o pensamento e questionar pressupostos e mesmo a tradição. Contudo, em certo sentido, ainda me considero bastante conservador, pois defendo uma Igreja Reformada sempre se reformando.
A primeira questão que me surgiu aprendendo sobre a história da Reforma foi “o que ela havia reformado”. De pronto, pude responder: “a doutrina”. Mas, em seguida, saltou um segundo problema: esse processo de fato levou a uma transformação humana e social capaz de construir um mundo segundo o Reino de Deus?
Ultimamente, essa pergunta tem sido de vital importância. Principalmente em um país como o nosso, no qual, apesar de um avanço célere do movimento evangélico, contraditoriamente há um empobrecimento do povo e um aumento constante e exponencial da violência.
De forma mais global, entretanto, mediante o avanço da evangelização e das missões cristãs mundiais, ao nos depararmos com um mundo em colapso prestes à extinção, devemos questionar sobre o que de prático a fé cristã tem transformado em nossa sociedade. Afinal, todos sabemos que precisamos urgente de outro modo de vida. Há de se exigir uma Reforma radical.
A partir de estudos elaborados por Ernst Bloch, Walter Benjamin, Juan Jose Bautista e Franz Hinkelammert, proponho um recorte sobre a Reforma Protestante frente ao Catolicismo feudal, lidando com a sociedade de sua época e desdobrando no mundo como conhecemos hoje.
A proposta dos reformadores de colocar a Bíblia “na mão do povo” trouxe a vantagem de desestruturar poderes controladores e opressores. Por outro lado, ainda que tenha se estruturado no interior do movimento protestante uma denúncia contra o papel de mediação entre Deus e a humanidade - apregoado pela Igreja -, em muitas comunidades nascidas da Reforma o sacerdócio universal dos crentes é sufocado pelo poder do clero.
Camponeses em protesto
Recapitulando alguns fatos: os camponeses que protestavam compreendiam sua fé a partir da terra, tal qual jardineiros responsabilizados por Deus em cuidar, cultivar e sustentar a vida davam continuidade à criação e, com isso, honravam a Deus. Desse lugar, as tensões aumentaram, pois, tendo a Bíblia em mãos, eles podiam demonstrar o modo pecaminoso que os príncipes viviam, quando seus banquetes eram nutridos pela injustiça contra os pobres trabalhadores do campo. Também podiam questionar o poder do Vaticano, demonstrando que não havia sustentação bíblica para nenhuma mediação institucional. Por fim, também enfrentavam a classe burguesa emergente ao protestar contra a acumulação de riquezas, fruto da exploração e de apropriação indevida.
![](/portal/images/2021/Riches_Heures.jpg)
Segundo Ernest Bloch, em meio a este conflito Lutero declarava que o ser humano jamais poderia produzir bem algum com sua teologia apoiada no pecado original. Por isso, sempre que alguém ou uma comunidade desejassem tornar presente o Reino dos Céus na terra, produziria o contrário. Todos os pobres camponeses, defensores da Reforma, obtiveram a inimizade do Vaticano, dos príncipes e da burguesia, que se uniram em torno dessa doutrina e puderam cassar e eliminar os hereges. Assim, entra para história cristã a supervalorização da forma de vida das cidades, dos burgueses e do tipo de trabalho realizado por eles.
Aos poucos, o pensamento burguês de que o homem é pecador por natureza foi se secularizando. Para a economia clássica, filha de autores reformados, o homem é egoísta por natureza e, em tempos mais recentes, para o neoliberalismo, o homem é ganancioso por natureza. Hinkelammert nos apresenta o que Popper popularizou em sua obra, A sociedade aberta e seus inimigos[1], a ideia de que quem quer produzir o céu na terra, a única coisa que vai conseguir fazer é trazer o inferno. Para que isso não aconteça é melhor manter e se submeter a esse sistema de dominação do que querer transformá-lo, tornando-o mais justo.
Cristianismo burguês
Concluindo, poderíamos, com isso, afirmar que o cristianismo e, em especial o protestante, tornou-se hegemonicamente burguês. Ele não só gestou o capitalismo, mas sustenta teologicamente, desde sua gênese, qual é o modelo de ser humano ideal e como esse ser humano pode ser salvo. Quem se opõe a esse modelo de vida é anticristo, é herege, comunista, etc. Assim, o planeta pode entrar em colapso, a vida correr perigo, os sistemas econômicos dominantes terem seus eleitos, decidirem sobre os que devem morrer e os que podem viver, e a teologia não propõe uma Reforma para que haja salvação da vida e de todos que a perdem no caminho.
A Reforma reformou a doutrina, mas não trouxe para nós uma transformação capaz de tornar o mundo habitável por Deus. Antes, como nota Walter Benjamin em Capitalismo como religião[2]:
“na época da Reforma, o cristianismo não favoreceu o surgimento do capitalismo, mas se transformou no capitalismo”.
Se considerarmos desta forma, ao contemplarmos nossa sociedade, percebemos a contradição entre o modo de vida excludente que estabelecemos e a boa notícia de que o “Reino dos Céus que é chegado”, no qual bem-aventurados são os pobres, não por serem pobres, mas porque deles é o Reino.
No Reino de Deus, os pobres não são criminosos, excluídos ou destinados à morte, mas são filhos e filhas de Deus amados. Assim, precisamos não só rememorar a Reforma, mas recapitular toda história e Reformar continuamente, esperançando que “seja feito aqui na Terra, como é no Céu”, onde “nessa nova vida já não há diferença entre grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro e cita, escravo e livre, mas Cristo é tudo e está em todos” - Colossenses 3:11.
___
Notas:
[1] POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos . Tradução de Milton Amado. São Paulo: EdUSP/Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1974 [1945].
[2] BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. Org. Michael Löwy, Tradução de Nelio Schneider. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.
___
*Eliel Batista é pastor na Igreja Betesda de São Paulo.
Imagem 1: Pixabay
Imagem 2: Iluminura em Les très riches heures du duc de Berry