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Semana de Oração: a injustiça é contra Deus. Por Cláudio Márcio

 
 
“Aos poderosos eu vou pregar que a injustiça é contra Deus e a vil miséria insulta aos céus” (João Dias de Araújo)
 
Por: Cláudio Márcio R. da Silva*
 
Cresci em uma família com valores cristãos participando da igreja Batista durante minha infância, adolescência e início de juventude na cidade serrana do Recôncavo baiano, isto é, Muritiba. Aos dezenove anos fui estudar no Seminário Teológico Batista do Nordeste em Feira de Santana-BA e, naquele momento, não tinha noção que iria mudar minha forma de ler o mundo. Assim sendo, o curso de teologia me ampliou os horizontes e comecei a desconfiar (por exemplo) do silêncio, por parte das instituições batistas, sobre a vida e obra do Rev. Martin Luther King Jr. Isso me parecia no mínimo estranho, não? 
 
Ainda no seminário tive o prazer de ser aluno do saudoso Rev. João Dias de Araújo, o que modificaria completamente minha maneira de pensar a vida e o meu fazer teológico. Coloquei os pés no chão e passei a compreender que minha fé em Jesus de Nazaré precisava proporcionar respostas e/ou possíveis caminhos alternativos para sujeitos sociais com uma vida esmagada e moída por um modelo econômico que insiste em nos coisificar e nos excluir através de relações sociais desiguais, racistas, machistas, homofóbicas em tom de “igualdade” de oportunidades para se construir os sonhos e a vida cotidianamente. 
 
Bem! Após alguns desencantos com alguns paradigmas batistas e uma aproximação de textos, testemunhos e companheirismo, João Dias se tornou não “apenas” um professor, mas, um amigo e tutor eclesiástico. Logo, ao sair do seminário não mais como batista, fui acolhido e, após os rituais institucionais, tornei-me Rev. da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil (IPU). O que isso tem a ver com o ecumenismo? Na minha experiência, definitivamente, tudo!
 
Através de inúmeros encontros e experiências fui me encontrando cada vez mais com católicos, luteranos, anglicanos, batistas etc., ali, essa descoberta do outro como cristão foi maravilhosa. Ora, é relevante assinalar isso pelo fato de que “Deus não era batista”, não é também da “IPU”. Na realidade, percebi, como diria Desmond Tutu, que “Deus não é cristão”. Encontrar naqueles e naquelas do caminho a face do Cristo de Deus foi uma descoberta encantadora.
 
 A reflexão no campo das ciências sociais também me abriu os olhos. Se já não era mais o mesmo, agora pensava a fé e minhas relações sociais de uma outra perspectiva. Com efeito, na antropologia, o encontro com o outro gera uma espécie de espanto, isto é, o outro em sua alteridade cultural e existencial. Esse encontro com o outro na história foi marcado por muitas injustiças sociais e docilidade de corpos, pois, se o outro não possuía alma, tudo podia ser feito ao seu corpo, assim, processos de colonização e cristianização se confundiram e um projeto civilizacional europeu, machista, hétero, branco se estabeleceu na América Latina e em partes do continente Africano. Um projeto extremamente violento onde se derramou muito sangue. Por isso, para se produzir teologia aqui, não se pode fugir deste contexto.
 
De fato, minhas mudanças foram e são lentas, no entanto, necessárias para que fosse possível combinar mística, reflexão e compromisso social. Acredite, perdi muitas noites de sono cheio de crises, suspeitas, medos e inquietações. Entretanto, quando se é “Surpreendido pela Graça de Deus” como diria o Richard Shaull, não se pode calar-se. Não se pode fugir do mutirão do Reino de Deus. É preciso colocar-se no caminho como cristão em defesa da vida em sua diversidade. Aprender a respeitar, conviver, discordar e abraçar aqueles e aquelas com quem encontramos na jornada nunca foi fácil, porém, necessário. Não somos iguais! Não precisamos ser! É preciso garantir o direito a diversidade! O outro em suas diferenças gera em mim identidades de quem eu sou. É um processo de “humanização” mútuo que se estabelece no encontro.
 
É importante salientar que não há receita pronta e minha experiência não é o padrão a ser seguido. Abalizei aqui como um testemunho de abertura para saber ouvir o outro em seus (des)encantos. Suspeito, que um desafio para liderança das igrejas hoje é a capacidade de escuta, pois, o outro traz nas suas vivências, seus saberes, seus sabores, seus anseios, seus medos e suas possibilidades de existir. Todavia, é preciso perguntar: quem é definitivamente este outro? Quem pode existir em nossa sociedade?
 
O negro é o outro? Se sim, qual a razão de receber oitenta tiros? A mulher é a outra? Se sim, qual a razão de tantas agressões, assédios, objetificação e feminicídio? O gay é o outro? Se sim, qual a razão de ser tratado como doente e ou animalizado? Qual a razão da violência de extermínio da população LGBTs? A indígena é a outra? Se sim, onde estão suas terras? Onde estão as terras dos quilombolas? Qual o outro que cabe na minha alteridade? 
 
É possível que alguém ainda não tenha entendido o tom do texto e questione: o que isso tem haver com a Semana de Oração pela Unidade Cristã (SOUC) 2019? Vejamos! No período de 2 a 9 de junho, com o tema inspirado em Deuteronômio, "Procurarás a justiça, nada além da justiça" (Dt 16.11-20), ocorrerá a Semana de Oração pela Unidade Cristã (SOUC). Ora, é um grande desafio e também uma grande oportunidade de fortalecer e amadurecer nossa fé cristã, uma vez que, tanto devemos buscar a unidade (João 17:21) quanto precisamos ter fome e sede de justiça (Mateus 5.6).
 
Queremos unidade na diversidade, assim, cada um(a) pode chegar e contribuir com essa experiência humanizadora da SOUC. O tema da justiça escolhido para ser trabalhado é oportuno em nossa sociedade cheia de desigualdades sociais que marginaliza, estigmatiza e exclui os menos favorecidos economicamente. Ora, essa é apenas uma desigualdade, pois, há ainda a geográfica, a étnico-racial, a linguagem, o gênero e a sexualidade. Temas e questões por vezes encaradas como tabu para alguns e por outros desnecessários de serem refletidos e debatidos.
 
Com efeito, precisamos nos sentar na mesa para conversar, pois, parece que perdemos essa capacidade. Temos uma nação dividida que disputa sentidos e narrativas de poder para hierarquizar e homogeneizar as relações contemporâneas, isto é, o grande desafio que a SOUC problematiza e denuncia ao mesmo tempo é que os cristãos precisam efetivamente se comprometer com a justiça. É preciso superar orgulhos e reconhecer equívocos e se aproximar cada vez mais da proposta do Reino revelado em Jesus de Nazaré.
 
Sabe-se que o problema não é discordar do ponto de vista do outro, todavia, é extremamente perigoso quando um grupo se entende portador da verdade ou único capaz de fazer a interpretação da Bíblia. Essa instrumentalização do texto sagrado para manipular, dominar, “imbecilizar”, é, de fato, preocupante. Demonizar o diferente e em nome de Deus é reivindicar uma santidade que não produz mudança social alguma.
 
Acredito que o grande convite da SOUC é para que cada cristão e cada cristã se arrependam de suas práticas injustas e que juntos assumamos o grande mutirão da justiça como meta de uma espiritualidade diaconal e dialogal em defesa da vida em sua multiplicidade.  Como sugere a canção Povo Novo do Zé Vicente “Quando o espírito de Deus soprou. O mundo inteiro se iluminou. A esperança na terra brotou. E o povo novo deu-se as mãos e caminhou. Lutar e crer, vencer a dor, louvar ao criador! Justiça e paz hão de reinar e viva o amor!”
 
*Cláudio Márcio é reverendo da Igreja Presbiteriana Unida (IPU) de Muritiba (cidade serrana do Recôncavo da Bahia)
 
Foto: Pixabay
 

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