Notícias

Entrevista: a difícil situação dos bahá’ís no Irã e no Iêmen

 
A comunidade bahá’í do Brasil está engajada em uma campanha internacional voltada a tratar da escalada dos confiscos de bens e propriedades, perpetrada pelo governo iraniano contra os bahá'ís no Irã, como tática de perseguição, com vistas a empobrecê-los e inviabilizar o seu desenvolvimento. O caso que a campanha tem tratado com maior foco é o dos bahá'ís de Ivel, os quais foram alvos de decisões judiciais que determinaram pela ilegalidade da posse de suas terras e o confisco delas. 
 
Para esclarecer melhor o tema, o CONIC foi conversar com Renata Amado Bahrampour, advogada, assessora do escritório de assuntos externos da comunidade bahá’í do Brasil e coordenadora da área voltada para as ações de enfrentamento às violações de direitos humanos dos bahá’ís do Irã e do Iêmen.
 
Confira a íntegra:
 
CONIC: Renata, você poderia começar nos explicando brevemente o que é a Fé Bahá’í e quem é a comunidade bahá’í?
 
Renata - Claro! Bem, a Fé Bahá’í é uma religião mundial fundada em 1844, na antiga Pérsia, hoje o Irã, por Bahá’u’lláh, que é quem os bahá’ís reconhecem ser o Mensageiro de Deus para a época atual. Os princípios e ensinamentos que Bahá’u’lláh apresenta estão embasados no princípio fundamental da “unidade na diversidade”, a partir do qual os bahá’ís reconhecem que Deus é um só, que a humanidade é uma só, que todas as religiões são verdadeiras e provenientes de uma mesma essência divina, e que a diversidade representa uma força poderosa, fonte de riqueza e aprendizado para o gênero humano. 
 
A comunidade bahá’í, portanto, é uma comunidade religiosa formada pelos seguidores de Bahá’u’lláh que tem como objetivo servir à humanidade. Ela tem se dedicado a contribuir, junto a outros, com o progresso material e espiritual da sociedade através da promoção de programas educacionais baseados nos ensinamentos de Bahá’u’lláh. Hoje somos cerca de 5 milhões de bahá’ís espalhados em todos os países, em mais de 100.000 localidades. No Brasil, estima-se que há cerca de 60.000 bahá’ís e há comunidades estabelecidas em todos os Estados e capitais do país, presentes em mais de 180 localidades no território nacional.
 
CONIC: Interessante você mencionar que a Fé Bahá’í nasceu no Irã, sendo que é onde, justamente, os bahá’ís têm sido alvos de perseguição religiosa. Como surgiu a perseguição aos bahá’ís nesse país?
 
R - Veja, a perseguição à comunidade bahá’í do Irã existe desde os primórdios da história da Fé Bahá’í, e podemos explicá-la a partir de um ponto de vista principiológico ou político, e pelo ponto de vista teológico. O primeiro tem bastante relação com os ensinamentos que a Fé Bahá’í propõe.  Considerando o contexto político-cultural da Pérsia do século XIX, tais princípios, como igualdade de direitos entre mulheres e homens, harmonia entre ciência e religião, a ideia de que a religião não deve se envolver com política partidária, etc, foram vistos pelo império persa como revolucionários e capazes de provocar uma alteração no status quo e na lógica de poder vigentes. Assim, os bahá’ís sofreram severa retaliação a fim de que fosse impedida a propagação dessas ideias na sociedade persa, porque a comunidade estava ganhando adeptos muito rapidamente. Para você ter uma ideia do quão grave foi isso, mais de 20.000 pessoas foram mortas só nos 6 primeiros anos da religião, sem contar todas aquelas que foram barbaramente torturadas e tiveram seus direitos violados de outras maneiras. Quanto ao segundo, esse tem relação com o fato de que os bahá’ís acreditam que após o Profeta Muhammad veio outro Mensageiro de Deus, no caso, Bahá’u’lláh, e acreditamos que muitos outros ainda virão após o próprio Bahá’u’lláh, porque a humanidade sempre vai precisar de um Guia espiritual dispondo de ensinamentos adequados para as necessidades de cada época. Vale dizer que, na verdade, concordamos com o Islamismo quando é dito que Muhammad é o “Selo dos Profetas”. De fato, Ele fecha um ciclo no que tange ao processo evolutivo da história das religiões, e entendemos também que, com a chegada de Bahá’u’lláh, um novo ciclo se iniciou.  
 
CONIC: E como que tem se dado a perseguição aos bahá’ís no Irã mais recentemente?
 
R - Acho que primeiro é importante dizer que a perseguição tem se dado de maneira continuada ao longo da história da comunidade bahá’í iraniana, mas a partir da Revolução de 1979 ela acabou ganhando novas características, passando a ser sistemática, sofisticada e se tornando, claramente, uma política de Estado, sendo empreendida deliberadamente pelas instituições estatais. Um ponto marcante na história da perseguição foi quando, em 1993, o relator especial da ONU para a situação de direitos humanos do Irã descobriu e divulgou um documento secreto do Estado iraniano que ficou conhecido como “A Questão Bahá’í”. Esse é um memorando estatal elaborado em 1991 e assinado de próprio punho pelo líder supremo Alí Khamenei. Chamo atenção para isso porque é nesse documento em que se encontra resumida a política persecutória do Estado iraniano contra os seus cidadãos bahá’ís, um plano de extermínio, cujo objetivo é submeter toda a estrutura do Estado a empreender um tratamento discriminatório contra os bahá’ís, a fim de estrangular qualquer possibilidade de subsistência desse povo e de tornar inviável a existência da comunidade bahá’í, de dentro para fora. 
 
Esse documento se encontra em vigor até hoje e é muito seguro dizer que, no Irã, não há um bahá’í sequer que não tenha sido atingido pela perseguição, em razão de sua característica multidimensional, capaz de alcançar todas as facetas na vida de um indivíduo bahá’í. Então, uma série de direitos humanos e direitos civis básicos têm sido violados contra os bahá’ís, que vão, por exemplo, desde prisões arbitrárias sem observância do devido processo legal; negação de acesso ao ensino superior; fechamento compulsório de comércios e lojas de bahá’ís; destruição de cemitérios bahá’ís; invasões a casas de bahá’ís e confiscos de bens e propriedades.
 
CONIC: Trazendo essa questão para o caso dos bahá’ís de Ivel, como tudo isso se reflete? Qual é a problemática principal?
 
R - Bom, a problemática recai, justamente, sobre o fato de que decisões judiciais prolatadas pelo poder judiciário iraniano, em novembro de 2019, e em agosto e outubro de 2020, decidiram por reconhecer a ilegalidade da posse das terras dos bahá’ís de Ivel e determinaram o confisco delas. A situação é muito grave, pois os bahá’ís de Ivel são trabalhadores rurais, de baixa renda, que vivem da agricultura familiar, e que obtêm exatamente dessas terras a sua fonte de subsistência. E esse não é um caso isolado de ataques a bens e propriedades de bahá’ís. Um outro exemplo foi quando, em novembro de 2020, mais de cem agentes do governo invadiram dezenas de casas de bahá’ís, num mesmo dia, em setes cidades no Irã, ordenando que entregassem uma série de bens pessoais, bem como as escrituras de suas propriedades, sem que houvesse qualquer justificativa para isso. Ou seja, o que a gente vê em marcha é uma tática de perseguição com vistas a empobrecer a comunidade bahá’í e impossibilitar, em maior instância, a própria existência dela, conforme prevê o memorando estatal “A Questão Bahá’í” de 1991.
 
CONIC: O que as decisões judiciais alegam contra os bahá’ís?
 
R - Olha, é importante destacar que, primeiro, essas decisões judiciais em desfavor aos bahá’ís de Ivel não possuem qualquer fundamento legal. Quando analisamos as decisões, é possível ver que o convencimento do juiz foi construído com base em argumentos que endossam a discriminação religiosa contra os bahá’ís. Isso é bem claro quando, na sentença de 2019, o juiz afirma, em resumo, que a posse dos bahá’ís de Ivel é ilegal porque eles fazem parte da “perversa seita bahá’í”, sem contar uma série de outras alegações que, muitas vezes, têm sido utilizadas pelo governo iraniano para disseminar falsas informações sobre a comunidade bahá’í e incitar a população ao ódio contra ela. Além disso, dois dos tribunais que prolataram as decisões são tribunais especializados na aplicação do Art. 49 da Constituição Iraniana. Basicamente, esse dispositivo indica que aqueles bens e propriedades que foram adquiridos através de meios escusos e que estão sendo utilizados para fins ilícitos podem ser confiscados pelo Estado. No entanto, não se consubstancia a aplicação desse artigo, uma vez que os bahá’ís de Ivel possuem essas terras há mais de 150 anos, repassadas há gerações e utilizadas para fins de agricultura familiar. Em verdade, não se sustenta qualquer argumento que tente relativizar a legalidade da posse das terras desses bahá’ís. 
 
CONIC: E como tem sido a reação da comunidade internacional diante desse caso?
 
R - O mundo tem observado de maneira estarrecedora essas violações de direitos humanos contra os bahá’ís e, com vigor, se manifestado sobre. Para citar alguns exemplos, representantes governamentais do Canadá, da Holanda, dos EUA, da Alemanha, do Reino Unido e da Suécia, bem como instituições islâmicas da Índia, do Canadá e dos EUA se pronunciaram condenando as decisões dos tribunais iranianos. No Brasil, recebemos o apoio das deputadas federais Maria do Rosário e Erika Kokay e do deputado federal Frei Anastácio, assim como da Conectas e do próprio CONIC, pelo que somos muito gratos. Tudo isso só mostra o quão legítimo é o apelo ao governo iraniano para que, no fim das contas, ele cumpra os tratados internacionais de direitos humanos, dos quais ele mesmo é signatário, e deixe de tratar com discriminação seus próprios cidadãos bahá’ís.  
 
CONIC: Para finalizar, qual que tem sido a resposta dos bahá’ís iranianos diante da perseguição que eles enfrentam e de que maneira você enxerga que a perseguição se relaciona com o Brasil?
 
R - Bem, apesar desse contexto hostil e de indiferença que a perseguição impõe, a resposta que os bahá’ís do Irã dão à perseguição é chamada de “resiliência construtiva”. Ou seja, é uma resposta não-violenta, mas não se restringe a isso. Eles se abstêm desse tipo de abordagem por reconhecerem que o fim da perseguição depende de um processo de transformação social que implica em perseverança e visão de longo prazo. Ou seja, os bahá’ís iranianos, para enfrentarem a perseguição, buscam contribuir com a localidade onde vivem, na medida do possível, por meio de projetos educacionais e de desenvolvimento socioeconômico, os quais também têm sido promovidos ao redor do mundo por outros bahá’ís, focando em processos integrativos para a construção de uma nova sociedade. Quanto ao Brasil, vários bahá’ís iranianos vieram ao nosso país como refugiados, sobretudo ao longo da década de 80, período em que centenas de bahá’ís foram executados pelo Estado. Os bahá’ís que aqui chegaram foram acolhidos pelos brasileiros e, junto com eles, têm buscado promover ações que visem o progresso do país. Eu também gostaria de dizer que os bahá’ís não são contra o governo iraniano, e o que acho mais interessante nessas duas últimas perguntas é que as respostas delas nos levam à inevitável conclusão de que quem mais perde com a perseguição é, infelizmente, o próprio Irã. Esperamos sinceramente que, num futuro próximo, o governo se sensibilize e possa enxergar as potencialidades da comunidade bahá’í para o desenvolvimento da nação iraniana. 
 

Publish the Menu module to "offcanvas" position. Here you can publish other modules as well.
Learn More.

Em que podemos ajudar?

Em que podemos ajudar?