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Após 131 anos, nunca a laicidade foi tão ameaçada como agora!

 
Por Elianildo da Silva Nascimento*
 
Em 7 de janeiro de 1890, 131 anos atrás, passou a viger o Decreto 119-A, que acabou com o regime do padroado, instituindo a separação entre Estado e Igreja no Brasil.
 
Por quase quatrocentos anos, o Brasil sob a égide dos seus processos de dominação e colonização, esteve sob o controle e influência estabelecidos pela imposição religiosa, numa verdadeira simbiose entre o poder religioso e a governança, reproduzindo os modelos especialmente Europeus, havendo assim como em diversos outros países, o estabelecimento de verdadeira dominação dos assuntos e espaços do que modernamente chamamos de Estado, pelas imposições advindas das concepções religiosas, o poder clerical e a igreja.
 
Neste período, vivenciamos desde o estabelecimento de pena capital para judeus, como disposto nos documentos primevos do arcebispado da Bahia de 1707, até a permissão da existência das igrejas protestantes históricas, contudo, sem que demonstrassem seus respectivos templos, considerando que a Constituição Imperial de 1824, permitia o culto doméstico ou particular para outras religiões que não a Católica Apostólica Romana, isso em momento histórico bem à frente.
 
O ambiente pré-republicano, que dentre todo o seu contexto, trazia em seu bojo a inspiração nos ideais da república americana, da Revolução Francesa e do iluminismo, contribuíram para o avanço, mesmo antes de nossa primeira constituição republicana, da proposição de instituição da separação Estado/igreja, advinda com o citado Decreto.
 
Tal necessária separação, veio se consolidar em nossa primeira Carta Republicana, permanecendo desde então, sempre insculpida enquanto princípio que orienta, inspira e direciona a relação estatal para com a religião e crenças.
 
Devemos reconhecer que esta separação por meio de norma, foi e ainda o é, objeto de permanente atenção e embates, para que a observância deste princípio da laicidade, não venha se tornar letra morta.
 
Podemos dizer que a laicidade se constitui numa contínua e ininterrupta luta, para que os interesses das estruturas religiosas ou de atores que a evocam, não venham se apoderar das instâncias estatais, de maneira que se perguntassem se realmente o Brasil é  um Estado laico, responderíamos que sim, mas lembrando que, esta laicidade, ao longo do tempo, sempre sofreu ameaças, mesmo o Estado tendo se adequado para sob a necessidade de também atender a outro princípio consagrado no texto constitucional, o da liberdade de crença, instituído um modelo de relação pluriconfessional, baseada na defesa e garantia de direitos do pleno exercício da fé, através da recepção deste direito em suas normas infraconstitucionais, coadunadas com a devida separação dos distintos espaços estatais e religiosos.
 
As tensões representadas pelos processos que buscavam manter alguma influência por parte da religião ao Estado, sempre estiveram presentes, tendo adquirido nos últimos trinta e cinco, quarenta anos, novas formas, as quais poderíamos considerar, tem se consolidado, a partir da mudança do panorama religioso nacional, com a diminuição da massa de católicos e crescimento de perspectivas cristãs de confissão evangélica.
 
O avanço de setores cristãos evangélicos, se consolidou tendo por base uma ânsia por espaços de poder político e econômico, aliado a interesses pessoais, demonstrando almejar uma substituição da influência religiosa católica romana no conjunto da sociedade, por novas versões de um “cristianismo” que se mostra excludente, fomentador de preconceitos e violências.
 
Envolto nestes processos, não podemos deixar de expressar que também ao longo do tempo ocorreram influências e ingerências geopolíticas que atuaram junto a setores religiosos com interesses que se sobrepunham as questiúnculas locais, dos atores e grupos, para atuarem e interferirem em níveis e projetos maiores, que em verdade, colaboraram ou fortaleceram interesses comuns. 
 
Assim, destacamos neste amplo processo, o indiscutível avanço de setores religiosos junto às instâncias do Estado, a começar pela ocupação de espaços nas esferas legislativas, posteriormente ampliadas para os espaços do poder executivo, com incidência ainda junto às estruturas de justiça, em clara e indiscutível afronta à laicidade.
 
No legislativo, o advento de “bancadas religiosas”; o advento de proposições esdrúxulas e atentatórias à laicidade, aos direitos civis, individuais e de minorias e à democracia; no executivo, alcaides “consagrando suas cidades à Deus” e “expulsando potestades demoníacas”; atuando nos sistemas de justiça, o advento de “associações de juristas evangélicos, católicos, espíritas”, todos com vistas a atuarem no sentido de impor suas crenças e valores a um conjunto social que sequer coaduna com suas respectivas visões de mundo, reinstituindo no país a influência religiosa nos assuntos do Estado, numa tentativa de tornar o que consideram “pecado” como lei para todos.
 
Estes exemplos preocupantes, levaram ao estabelecimento no campo social, de pautas morais, que em verdade se manifestam através do ataque a direitos civis, humanos, constitucionais e legais, de segmentos amplos da sociedade como mulheres, LGBT+, indígenas, outros religiosos, como seguidores de matriz africana, mas também ateus e agnósticos, ou seja, uma onda moderna de situações análogas já ocorridas historicamente.
 
A questão nevrálgica é que estas pautas atuais passaram a ser expressas dentro dos espaços estatais, dentre os quais, especialmente no campo legislativo, onde as crenças e “pecados” pertencentes ao universo destes grupos, tentam ser impostas ao conjunto da sociedade como norma geral a todos, algo inadmissível e indiscutivelmente atentatório a um Estado laico.
 
Os resultados eleitorais de 2018 vieram agravar sobremaneira este quadro, na medida que somado a perspectivas de extremo conservadorismo, há a utilização da religião como elemento de liga, de união entre estas forças, aprofundando um discurso e reforçando a adesão as pautas comuns a estes grupos ou lideranças religiosas, assim como no passado, evocando “batalhas espirituais” contra tudo e qualquer coisa que represente pensamento crítico, científico, alinhado aos direitos humanos e laico.
 
No ano de 2019, pudemos vislumbrar o estabelecimento, como jamais visto modernamente, de um agravamento deste nefasto quadro de aprofundamento de uma interferência explícita no Estado, por parte da religião, onde representantes estatais passam a reverberar discursos “religiosos”, advogando que “a religião a partir deste momento, passaria a ter o espaço que lhe foi negado”, evocando ideologias com viés fundamentalista cristão e neofascista, baseada em visões de grupos e setores de um cristianismo evangélico, que amplia absurdamente sua força, num ápice do que viera sendo construído ao longo do tempo.
 
Assim, se já não bastassem agentes públicos de alto escalão, declararem-se “terrivelmente evangélicos”; outros atacarem a ciência e o pensamento científico; diplomata dizer que “a liberdade religiosa também precisa incluir a possibilidade de converter aqueles que não têm religião”; ocupante da presidência dizer que “vai colocar no Supremo Tribunal Federal, ministro terrivelmente evangélico”, passamos a ter cultos no Palácio do Planalto com centenas de pastores promovendo louvores.
 
Para agravar ainda mais a situação, na esfera internacional, surgiu um movimento do governo americano, precisamente do então ocupante; hoje derrotado a bem do mundo; da presidência de lá, denominado “iniciativa pela liberdade religiosa”, que nestes dois anos produziu amplas ações com apoios de diversos países que coadunam as mesmas perspectivas medievais, as quais se somaram ao advento no Brasil do “ministério Capitólio”, intensa iniciativa que busca aprofundar a interferência e presença “religiosa” nos espaços estatais, propondo que os agentes públicos desenvolvam suas ações e construam políticas, coadunadas com a bíblia.
 
Assim nesta data tão expressiva do aniversário da separação Estado/igreja, ao mesmo tempo que percebemos as graves ameaças à laicidade, através de falas como “Deus acima de tudo”; “a igreja é quem pode salvar o Brasil”; “os pastores tem maior interesse na evangelização de índios”; “vamos ganhar o Brasil pra Jesus”, “a bíblia e não a Constituição deve nos guiar” ou ainda, “agora é: menino veste azul e menina veste rosa”, temos que redobrar esforços para contrapor a este retorno à difusão de pensamentos tão obtusos, ignorantes e concepções retrógradas, cônscios que uma sociedade plural e respaldada pelos desejos democráticos, não pode coadunar com visões que desconhecem o outro, através de concepções de mundo e valores excludentes, preconceituosos, que promovem a dissenção, a intolerância, o ódio, que tentam se impor por meio do estabelecimento de uma teocracia velada ou disfarçada de legalidade.
 
Tão mais grave foram estas influências das odes à obtusidade, que os discursos baseados na crença ilógica e eivada de fundamentalismo, somadas e até, comandas pelo oportunismo político, pela má fé, pela desumanidade criminosa, contribuiu para o acúmulo das mortes pela pandemia, num cenário que pode ainda agravar-se, visto que os mesmos discursos insuflam a negação da ciência e uma guerra contra as vacinas.
 
Esperamos que este novo ano de 2021, não seja uma extensão de 2020, um 2020.2, com a permanência destes movimentos irracionais, anticivilizatórios, lesa-humanidade, comandados pelo obscurantismo religioso e neofascista fomentador da morte.
 
Constatamos que passados 131 anos do advento da laicidade no Brasil, o momento histórico revela que sua defesa nunca foi tão necessária quanto agora, para impedirmos que venham se fortalecer as trevas da ignorância.
 
Somente um Estado laico e democrático, garante o respeito e o direito de todos e todas a uma existência livre para todas as crenças, bem como, um Estado que cumpra seu papel de abarcar a todos e todas.
 
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* Elianildo da Silva Nascimento é advogado, coordenador da United Religions Iniciative – URI Brasília, membro da coordenação da Rede Nacional da Diversidade Religiosa – (RENADIR) e da organização dos Encontros da Nova Consciência. Ativista de Direitos Humanos, também coordena o Comitê Distrital de Diversidade Religiosa (CDDR).
 
Imagem: O Grito, de Edvard Munch

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