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Elias Wolff: A justiça entre os povos exige justiça no acesso à água

 
O planeta terra vive na iminência de um desastre ecológico. Estudos que advertem a respeito dessa possibilidade, mesmos os mais otimistas, não negam que cotidianamente constatamos quão graves são as ameaças à sobrevivência dos seres vivos do planeta terra, em suas variadas formas e espécies. Tal problema deve-se a um fator fundamental: a oikoumene, “casa comum” de todos, a terra, está sendo ameaçada por fatores, de causa humana ou não, que provocam um profundo desequilíbrio nas forças mantenedoras da vida.
 
As consequências disso são sentidas na poluição do ar, dos rios e dos oceanos, nas mudanças climáticas, na escassez da água potável, no desequilíbrio dos ecossistemas, no desaparecimento da biodiversidade, entre outros elementos que caracterizam a “crise ecológica” atual. Trata-se do esgotamento de considerável parte das forças naturais fundamentais para a subsistência da realidade vital em diferentes regiões da terra.
 
Na raiz dessa realidade, encontra-se o afã da sociedade técnico-científica. A busca pelo auto-desenvolvimento humano levou ao desenvolvimento da ciência. Mas esta foi entendida de um modo estreito, como criação de meios técnicos que visam o progresso das sociedades. E esse progresso limitou-se à dimensão material da vida humana. Como consequência, entendeu-se por desenvolvimento científico o que possibilita o controle das forças da natureza. E da ideia de controle passou-se à ideia de uso e exploração irresponsável dos recursos naturais. Assim, por séculos, a relação do ser humano com o seu ambiente é de uma destruição tal que muitos danos provocados já se mostram irreparáveis. O desejo desenfreado de autodomínio e o emprego inescrupuloso de recursos tecnológicos provocam uma grave crise de todo o sistema vital do cosmos. A crise ecológica da sociedade atual é crise do sistema integral da vida planetária, com desequilíbrio de seus subsistemas que vão da devastação das matas até a expansão das neuroses, da poluição das águas até o sentimento niilista na vida humana.  
 
O que está acontecendo hoje na Síria, com o corte do acesso à água para grande parcela da população, é uma expressão que a crise ecológica é crise de humanaidade. Interesses políticos, econômicos e armamentistas, a intervenção de países com desejo de poder local, causam graves consequências no abastecimento da água à população. A violência na Síria é expressão da ambição, do desejo de poder. Por trás disso, há uma crise de humanidade.
 
Assim, as questões ambientais não são isoladas das questões sociais. Tudo está estreitamente relacionado, fatores sócio-ambientais com fatores políticos e econômicos do mundo neoliberal. De um lado, temos um uso indiscriminado da água e sua constante poluição. De outro, a falta de água. Atualmente, cerca de 700 milhões de pessoas, de 43 países, sofrem pela escassez da água. A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que no ano 2050 cerca de 50 países estarão enfrentando sérias crises no abastecimento de água. Um relatório do Banco Mundial, de 1995, previa que as guerras do século XXI serão motivadas pela disputa de água, diferente dos conflitos do século XX, marcados por questões políticas ou pela disputa do petróleo.
 
Na verdade, o problema real não é tanto uma escassez da água – o que também acontece – mas, sobretudo, a proibição ao acesso a esse direito de todo ser humano. Isso é uma das mais graves injustiças. Em todo o mundo, a água é utilizada pelas indústrias (20%), os empreendimentos agrícolas (70%), o extrativismo mineral e tantos outros projetos econômicos, que não apenas consomem significativa parte da água potável acessível, como poluem e tornam imprópria para o uso grande parte da água que não usam diretamente. Apenas 10% da água do planeta é utilizada para o consumo humano, e grande parte tem sua qualidade comprometida. O Brasil, por exemplo, com o maior volume de água doce do planeta (12%, e 53% da disponibilidade da água na América Latina), tem 70% dos seus rios poluídos com todo tipo de dejetos industriais, domésticos e químicos. A América Latina possui 26% dos recursos hídricos do planeta para abastecer apenas 6% da população mundial, sendo o Aquífero Guarani o maior lençol freático de água do planeta (1,2 milhões de Km2). Mas 70% das águas residuais da região não são tratadas. Neste continente, menos de 14% dos resíduos sanitários provenientes de moradias é tratado em estações de saneamento, com cerca de 123 milhões de pessoas carentes de saneamento em suas residências; 48 milhões de pessoas carecem de acesso à água potável nessa região. Atualmente, em todo o mundo mais de 2 bilhões de pessoas não têm acesso à água, e mais de 4,5 bilhões não dispõe de saneamento básico, realidade alarmante vivida por uma significativa parte da população também no Brasil e na América Latina[1].
 
Urge refletir sobre essa situação e tomar atitudes concretas para transformá-la. Reafirmamos aqui com a Rede Ecumênica da Água, do Conselho Mundial de Igrejas: “Água é dom de Deus, direito humano e bem comum”[2]. E com isso, por várias iniciativas como a Echo School, propomos práticas concretas de uma “conversão ecológica global” (Papa Francisco) também no cuidado, no uso responsável da água, como recurso que todas as pessoas tenham acesso. Água é dom, portanto, gratuita na recepção e com igual gratuidade deve ser distribuída e utilizada. Tal postura afirma a fé no Criador que concede o dom da água e a nossa responsabilidade de cuidar desse dom. água é direito humano. Na verdade, esse direito não é apenas dos humanos, mas de todas as criaturas que necessitam da água para a sua sobrevivência. Água é um bem comum, de pertença a todas as criaturas que delas necessitam para viver, particularmente os povos. Urge que isso seja afirmado na Síria, bem como em todos os lugares onde a injustiça se afirma pela falta de acesso à água que garante a sobrevivência dos povos e da criação como um todo.
 
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*Elias Wolff é membro da Rede Ecumênica da Água (REDA), professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Teologia – PUCPR, realizou estágio pós-doutoral em Teologia pela Lutheran School of Theology em Chicago e atualmente é pesquisador bolsista CNPQ e líder do Grupo de Pesquisa Teologia, Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso (PUCPR).
 
Referências:
 
[1] MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS (MAB). “A questão da água na América Latina”. Disponível em: http://www.mabnacional.org.br/artigo/quest-da-gua-na-am-rica-latina. Acesso em 29 de agosto de 2019.
 
[2] WOLFF, Elias; GORBOSTH, Maike; MORCK, Christopher; FLACHIER, Veronica. Água: Dom de Deus, Direito Humano e Bem Comum - Refletir, Rezar e Agir – Uma afirmação ecumênica. São Leopoldo: CEBI, 2014.
 
Fonte: Vatican News
Foto: Pixabay

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