Camila Marçal*
Desde o início de 2020, o mundo vive uma grande crise sanitária, provocada pela Covid-19. As diretrizes para minimização dos riscos da pandemia contemplam recomendação sobre uso de máscaras e higienização até orientações que variam entre distanciamento social e isolamento completo, dependendo de variáveis como grupo de risco, profissão, sintomas, entre outros.
A iminência da morte associada às mudanças no nosso modo de viver e relacionar impactam direta e indiretamente na nossa saúde mental. Se no início da pandemia, o risco do vírus era uma abstração, ele se torna cada vez mais concreto através das contaminações e mortes que se intensificam e se aproximam da nossa realidade.
Cada um de nós, a seu modo, está reagindo a essas mudanças. Da negação ao pânico. Da compaixão à indiferença. Medos, dúvidas e incertezas. A imprevisibilidade da vida bateu à nossa porta. Estamos vivendo um processo de luto compartilhado. Chamamos por luto todo o processo que envolve a elaboração do impacto de mudanças ou morte de alguém, passando desde a aceitação da perda, vivência da dor, adaptação à ausência/mudança até a reconstrução da relação e novos direcionamentos.
Por ser provocador de tanta angústia, em todos os tempos e culturas, o ser humano criou formas e rituais coletivos para vivenciar o luto: velórios, enterros, missas, homenagens, entre outros. Precisamos de simbolismos que nos ajudem a elaborar as mudanças e perdas existenciais.
Os protocolos de segurança exigidos durante o período de pandemia, além de mudar a nossa forma de viver, mudaram também a nossa forma de morrer. Pessoas diagnosticadas com o vírus são imediatamente isoladas. Velórios foram suspensos. Enterros rápidos e com quantidade limitada de pessoas. Protocolos fúnebres que causam mais incômodos que alívio. Cerimônias religiosas proibidas. Ausência de abraços e conforto adequado e muito mais.
O desamparo existencial dos enlutados está escancarado. Não bastasse a dor da morte, soma-se a ela a dor do "não saber", do não poder se despedir e de não poder receber conforto. "Ela foi, mas eu não vi. Não sei como ela estava. Não segurei sua mão. Foi por telefone que soubemos. Foi tudo tão rápido. Às vezes parece que é mentira. Não dá pra acreditar. E se eu pegar esse vírus também? Parece que as pessoas estão com medo de mim".
A despeito de toda a compreensão racional sobre nossa finitude, a experiência da morte de alguém que amamos dói absurdamente. Ela toca em algo que nos define: não nos fazemos sozinhos. Somos marcados por nossas relações e a vida ganha significado à partir dos nossos afetos.
A morte se torna, portanto, um evento traumático para os enlutados, abalando as certezas sobre a vida e gerando grandes angústias. Essas dores, profundamente humanas, precisam ser acolhidas e compreendidas tanto no seu aspecto singular quanto comunitário.
A vivência coletiva dos ritos finais são importantes para a concretização e elaboração das perdas, pois criam um espaço de comunhão, cumplicidade e conexão que ajudam na ressignificação daquela experiência, além de serem uma oportunidade de receber afeto, homenagear, despedir, fazer reparações e até mesmo reconciliações com o ente querido.
A impossibilidade da vivência coletiva dos rituais de despedida, sobretudo nas mortes repentinas, pode impactar de maneira muito negativa as pessoas enlutadas. Deixam a sensação de algo em aberto, já que etapas do processo de construção de sentido são suprimidas, podendo dificultar a elaboração do luto e até mesmo desencadear dificuldades futuras, tais como medos, fobias, ansiedades, depressão, em decorrência do não acolhimento das emoções e angústias despertadas nos enlutados.
O luto não é uma doença, ele é uma resposta natural a um evento traumático da vida. Permita-se viver seu luto. Nesse contexto, da necessidade humana de dar sentido à (cada) morte e da impossibilidade da realização dos rituais fúnebres tradicionais por conta da pandemia, pense formas alternativas de rituais (individuais e coletivos) que te ajude na concretização da experiência da perda e na troca de afetos.
Expresse sua dor. Ouça seus medos. Converse. Faça encontros pra lembrar. Se reúnam para contar histórias. Escreva cartas. Diários. Veja fotos. Chore. Lembre mais. Das músicas, dos cheiros, dos encontros. Faça uma homenagem. Peça desculpas. Conte como você se sente. Construa caixas de memória. Sinta tudo o que tiver de sentir. Não se isole. Se for necessário, peça ajuda! Estamos órfãos dos nossos ritos, mas não da nossa humanidade. Eu sinto muito!
*Camila Marçal é psicóloga e mestra em Ciências da Religião. Atua como professora, palestrante e psicóloga clínica.
Fonte: Dom Total
Imagem: Pixabay