
Brasileiros e brasileiras vivem, nos últimos meses, um drama bem importante: a perda de muitos entes queridos para a covid-19. Em muitos casos, essa perda vira revolta, sobretudo num contexto onde muitos, inclusive pessoas públicas, negam a gravidade da pandemia e espalham retóricas negacionistas.
Em um cenário como esse, a vivência do luto ganha um contorno todo sombrio, que mistura a despedida abrupta da pessoa amada e a falta de perspectiva de mudanças. Mas há pequenas luzes sendo acesas aqui e ali. E foi sobre isso que conversamos com o psicanalista Eduardo Silva.
Para ele, as igrejas desempenham papel importante nestes momentos de incerteza:
“As comunidades de fé são onde o laço social pode ser vivenciado. Ali, as pessoas se encontram, falam de suas experiências, ajudam-se mutuamente, cantam, choram e se alegram”, diz.
Formado em Teologia nos anos 80 pelo Seminário Teológico Presbiteriano Independente, teve atuação intensa nos movimentos de juventude Metodista. Em 2010 começou a se aproximar da psicanálise, primeiro como analisando e, depois, iniciando nos anos seguintes um processo de formação para atuar na área. Hoje divide seu tempo entre os atendimentos, o grupo de pesquisa RELAPSO (Religião, Laço Social e Psicanálise) e a Clínica Pública de Psicanálise Rua do Rio, na comunidade do Jacarezinho (@cpp_ruadorio).

“Depois de muitos anos atuando no universo religioso me deparei com questões muito subjetivas e para as quais queria respostas, ou pelo menos encontrar um meio de compreender certos impasses existenciais, entender processos mentais nos quais eu me via mergulhado, circuitos de afetos que produziam um estado melancólico, além de um outro aspecto muito interessante que envolvia os modos de relação e de laço social, que passam pelas categorias de demanda de reconhecimento e sujeição. De alguma forma, a psicanálise me fez dar conta destas e outras questões que com as quais lidava naquele momento”, explica.
A seguir, confira a entrevista que fizemos com ele.
1) Eduardo, você esteve em uma atividade conjunta com o CONIC, que foi um evento online do movimento Respira Brasil. Um dos focos daquele encontro foi falar do luto. Como você tem visto o luto dos brasileiros e das brasileiras neste momento de pandemia?
Eduardo: O luto é um modo de lidarmos com as diversas perdas dolorosas que ocorrem em nossa vida. Nesse caso específico da pandemia, estamos falando da morte. Este é um processo que pode ser diferente para cada um de nós devido a inúmeros fatores. A pandemia nos atingiu de forma contundente. Não é difícil encontrar alguém que tenha perdido um parente próximo, um amigo ou vizinho. A morte provoca uma dor, nos atinge psiquicamente, nos abala, entristece, impõe uma separação definitiva de alguém que amamos, uma separação com a qual teremos que “com-viver”. É como se tivéssemos uma parte de nosso corpo amputado. O que aconteceu na pandemia é que as medidas sanitárias que se fizeram necessárias para evitar a contaminação, comprometeu os ritos, as despedidas, não houve um último adeus, um gesto, até isso foi interditado pela ameaça do vírus. Sem falar nos casos em que havia falta de estrutura para lidar com o número de mortos e a dignidade necessária em um momento tão sensível como esse.
2) Existe um segredo para viver bem o luto, mesmo quando a morte do familiar poderia ter sido evitada? Pergunto isso porque muitas pessoas que morreram nesta pandemia já poderiam ter sido vacinadas e não foram. Nesse caso, a dor não pode acabar sendo "contaminada" por um sentimento de revolta?
Eduardo: Eu não diria que tem um segredo, mas que o luto é um processo. O que acontece é que, em um primeiro momento, é muito difícil aceitarmos a dor da separação da pessoa amada. Na maioria dos casos, as pessoas internavam seus familiares na esperança de uma recuperação. Receber a notícia da morte e, ao longo desse processo, se dar conta de que algo poderia ter sido feito para que a morte pudesse ser evitada, torna o luto ainda mais doloroso, mesmo assim incontornável. Ainda que consideremos racionalmente que em alguns casos a morte seria inevitável, como mensurar isso com cada pessoa? É natural que haja indignação e revolta, aliás, seria estranho se as pessoas não se indignassem e não se levantassem contra a falta de medidas preventivas, contra a falta de estrutura e de oxigênio (como aconteceu no Amazonas) e, por fim, pela demora em adquirir as vacinas e os escândalos que têm sido revelados na CPI que investiga estas irregularidades.
3) Você desenvolve um projeto na comunidade do Jacarezinho, no Rio. Como tem sido esse "vivenciar do luto" entre comunidades mais periféricas, e como a psicanálise pode chegar a essas pessoas como auxílio e suporte?
Eduardo: Nossa experiência na Favela da Jacarezinho é um eterno aprendizado. A primeira lição vem pela fala de uma moradora que quando perguntada sobre as modalidades de sofrimento, para nossa surpresa, a sua resposta não foi a violência policial – e essa conversa ocorreu em maio no mesmo mês da chacina que vitimou 28 pessoas entre elas um policial civil. Também não era do tráfico. Mas era a indiferença do Estado e da Sociedade. A queixa era da falta de políticas públicas, tais como saúde, educação, esporte, cultura, saneamento básico, etc. Nesse sentido, o luto é contínuo, mas a resistência e a resiliência são maiores. Isso não significa dizer que a violência não é um fator de sofrimento, como mostra essa pesquisa feita pela organização inglesa People’s Palace Projects e pela Redes da Maré, publicado em matéria da Carta Capital.
Os dados da pesquisa apontam que um terço da população dessa comunidade é afetada pela violência e o resultado é percebido pelo aumento de casos de depressão, ansiedade e tentativas de suicídio. Ao mesmo tempo, o Estado não disponibiliza dispositivos de saúde que possam atender à população, que recorre, quando muito, a uma medicalização indiscriminada. É possível que outros grupos em situação semelhante apresentem os mesmos resultados.
Cabe ressaltar, ainda, que no período da pandemia houve aumento considerável do consumo de álcool e drogas como forma de lidar com esse sofrimento. Por último, mas não menos importante, devo mencionar o aumento da violência doméstica. Todos esses fatores que eu citei produzem sofrimento.
Os profissionais que atendem na Clínica Pública estão atuando no sentido de acolher e escutar essas pessoas em sua singularidade e formas de sofrimento, dando um suporte para que esse momento possa ser atravessado.
4) O contato das pessoas com uma igreja é positivo?
Eduardo: Sim. Na maioria dos casos, as comunidades de fé são onde o laço social pode ser vivenciado. Ali, as pessoas se encontram, falam de suas experiências, ajudam-se mutuamente, cantam, choram e se alegram.
5) Luto pode causar letargia - o que é absolutamente compreensível -, mas também nos levar à luta. Por qual razão o impacto do luto é tão diferente em determinadas pessoas?
Eduardo: É diferente exatamente por conta da singularidade do ser humano, da constituição de sua personalidade. Cada um vai lidar de forma diferente com a sua dor. Esse é um princípio fundamental da psicanálise, levar em conta a subjetividade de cada sujeito.
6) Do ponto de vista da coletividade, podemos dizer que a sociedade brasileira está aprendendo algo com tudo isso?
Eduardo: Difícil fazer essa avaliação, me parece que há um grupo de pessoas que sim, faz uma crítica do modelo de vida, das relações sociais, das políticas públicas. Por outro lado, outros reforçam o velho modelo que nos trouxe ao caos que estamos vivendo hoje; estes são os que estão em negação, identificados com um modelo social opressor e alienante. Ou seja, parte da sociedade pode sair melhor, mas não todos.
7) O que você diria, agora, para pais que perderam seus filhos, e filhos que perderam seus pais?
Eduardo: Eu diria: falem sobre a sua perda e que estamos à disposição para ouvir. Nesse sentido, como diria Rubem Alves, o melhor a fazer e oferecermos a nossa escuta e, por vezes, o nosso silêncio respeitoso pois, mais do que falar, o importante é ouvir atentamente e acolher o outro em sua dor.
8) Gostaria de acrescentar algo?
Eduardo: Estamos diante de uma grande oportunidade de nos organizarmos como coletivos de profissionais de saúde mental e criarmos dispositivos para atendermos a população mais carente de nossas cidades. É preciso ter boa vontade e compromisso!
Fotos: Reprodução