Deixa-nos aos 88 anos, em Genebra, Suíça, um dos expoentes do ecumenismo na América Latina e também para além dela. Teólogo leigo metodista, nascido em Montevidéu, estudou teologia na renomada instituição ecumênica Facultad Evangélica de Teología, mais tarde denominada ISEDET, de Buenos Aires. Decidiu, contudo, não se tornar pastor, mas prestar um serviço eclesial como pessoa leiga. O doutorado em ciências da religião obteve-o na Universidade de Estrasburgo, França. Tinha também sólida formação em filosofia e ciências sociais e soube, como poucos, expor as questões teológicas como relevantes para a sociedade, a economia e a política.
Atuante já no movimento ecumênico estudantil latino-americano, foi inspirado, como muitas pessoas de então, pelo teológo presbiteriano americano, que atuou na Colômbia e mais tarde no Seminário Presbiteriano de Campinas, Richard Shaull, o qual nos anos 1960 cunhou o que se chamou de “teologia da revolução”, precursora da teologia da libertação. As ACAs (no Brasil) e os MECs (em países latino-americanos de fala espanhola) constituíram um forte movimento ecumênico continental, especialmente no mundo protestante, constituindo grupos no mundo universitário, mas com extensão também para o nível secundarista, designação então para o ensino de nível médio.
Julio de Santa Ana pensava ainda para mais além, sonhava e propugnava por uma cooperação latino-americana de igrejas comprometidas com o evangelho e sua incidência nas causas politicas em favor de uma realidade em que injustiças e opressões fossem superadas. Um dos livros que viria a escrever, em 1980, recebeu o título de “A Igreja e o Desafio dos Pobres”. Mas considerava sumamente importante atuar, com base na fé, também além das fronteiras institucionais das igrejas, por exemplo em meio aos movimentos sociais. Falava-se no fim dos anos 1950 e primórdios dos anos 1960 de “transformações radicais na sociedade” ou, então, de que a sociedade estaria passando por um “processo revolucionário”.
Julio de Santa Ana tornou-se secretário-geral de uma entidade surgida em 1961, numa conferência realizada em Huampaní, Peru, Igreja e Sociedade na América Latina, conhecida por sua sigla ISAL, que passou a ter sede em Montevidéu. Já em 1963 foi criada a revista Cristianismo y Sociedad, da qual Julio de Santa Ana foi editor responsável em seus primeiros anos, e seguiu sendo publicada em Montevideu até 1973, quando ocorreu o golpe militar no Uruguai e a produção da revista foi transferida a Buenos Aires, sendo publicada lá até 1980 e posteriormente em vários outros países.
Após o golpe militar no Uruguai, Julio de Santa Ana, como tantas outras pessoas, teve que optar pelo exílio, sendo acolhido pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI), em Genebra. No CMI foi secretário de estudos na Comissão para a Participação das Igrejas em prol do Desenvolvimento (1979-1982). Em 1983 trasnferiu-se ao Brasil, sendo co-diretor do Centro Ecumênico de Serviços para a Evangelização e para a Educação Popular (CESEP). Atuou também como professor no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação, sediado na Universidade Metodista de São Bernardo do Campo, SP. Em 1987 publicou “Ecumenismo e Libertação”, outro de seus muitos livros. Nele examinou o histórico e as razões para as divisões das igrejas, bem como a busca por sua superação, advogando em favor de uma perspectiva libertadora nos esforços em favor da unidade. Lecionou também no Instituto Ecumênico de Bossey, Suíça.
Num artigo de cunho parcialmente autobiográfico, publicado em 2001, Julio de Santa Ana revelou ter se criado numa família com forte traço agnóstico, residente num bairro popular de Montevidéu, e com fortes laços de solidadriedade com as famílias operárias do bairro. Na proximidade havia uma igreja metodista, cujo missionário americano, um pacifista radical, era comprometido com o chamado “evangelho social”, com influência dos teólogos Reinhold Niebuhr e Karl Barth, e a igreja desenvolvia uma prática de portas abertas para com a comunidade. Por essa influência, ainda adolescente, decidiu tornar-se cristão, mas manteve desde sempre o compromisso social que soube conjugar com sua fé como algo intrinsicamente derivado dela.
Em sua trajetória teológica e ecumênica manteve, através dos anos, a convicção de que Deus atua na história, que a Encarnação em Cristo foi expressão da identificação com os humanos, particularmente as pessoas pobres e vulneráveis, que as pessoas cristãs são chamadas a uma prática coerente com essa realidade divina e que a teologia deve refletir sobre essa prática. Esteve sempre envolto com a teologia da libertação, mas entendendo que ela não pode se enrijecer como um arcabouço dogmático, mas permanecer ativa e aberta às necessárias adaptações a novos tempos. E que as igrejas, seja a católica, sejam as evangélicas e protestantes, são chamadas à unidade, em fidelidade ao Cristo encarnado.
Texto: pastor Dr. Walter Altmann