A pastora Sônia Gomes Mota, que faz parte da Igreja Presbiteriana Unida (IPU), lançou recentemente o livro “Vozes da resistência: A atuação das mulheres na história da Igreja Presbiteriana Unida”. Na obra, a autora destaca a atuação e o testemunho das mulheres que sempre foram e permanecem sendo negligenciados pela maioria das tradições protestantes.
Para entender um pouco mais sobre esse assunto, e conhecer melhor a riqueza do ponto de vista trazido pela pastora Sônia, conversamos com ela por meio de uma entrevista virtual.
A íntegra desse bate-papo você confere a seguir.
Boa leitura.
CONIC: O que te motivou a escrever esse livro?
R: A minha principal motivação foi perceber a invisibilidade das mulheres na história da minha Igreja. Eu que vinha de uma pequena igreja do interior da Bahia liderada por mulheres e de um Presbitério onde as mulheres exerciam papel de grande liderança e articulação, estranhava que nos livros ou artigos escritos sobre a história da Igreja Presbiteriana Unida - IPU as mulheres pouco figuravam. Este silêncio era completamente estranho para mim, porque contradizia experiências que eu havia tido com as mulheres na igreja. Foi pela voz de uma mulher que aprendi minha primeira oração e os primeiros cânticos religiosos. Foi também através dos ensinamentos de mulheres que conheci as histórias bíblicas e suas personagens fascinantes.
Foi especialmente através do trabalho das mulheres que vi o templo presbiteriano da minha cidade ser erguido.
Então, onde estava relatada a atuação das mulheres da Igreja? Por que os livros enalteciam o trabalho dos homens e as perseguições que eles sofreram, mas silenciavam as dores, lutas e resistência das mulheres? Por que elas estavam invisíveis?
Para responder estas questões, comecei a dialogar com a historiografia feminista porque ela possibilitava estabelecer, dentro da história, o lugar vivencial da mulher. Foram muitas as companheiras de diálogo e foram muitas as descobertas. No desenvolver da minha pesquisa, percebi que esta ausência e silenciamento também acontecia no âmbito da História da Igreja em geral.
CONIC: Temos vários bons exemplos de atuação de mulheres nas igrejas, tanto nas históricas, quanto nas pentecostais. Mas isso tem pouca visibilidade, concorda? Qual é a razão?
R: Como respondi acima, a liderança das mulheres na igreja foi e ainda é muito invisibilizada. Sem dúvida, a tradição patriarcal se encarregou de ocultar e diminuir a liderança e o protagonismo feminino e sua importância nas igrejas e também ocultou e escondeu suas produções intelectuais. Neste sentido, nos ajudou muito a pesquisa das teólogas feministas quando perguntavam pelas mulheres no cristianismo e trouxeram à luz uma vasta presença de mulheres pregadoras, apóstolas, diáconas, escritoras, biblistas e teólogas. Foi graças a estas pesquisas que fui redescobrindo e dando visibilidade não só à liderança das mulheres como a sua produção intelectual. Desde o movimento de Jesus redescobri a importância da liderança de Marta, Maria Madalena, a apóstola, Lídia, Priscila e tantas outras como também descobri a produção teológica de mulheres como Soror Juana Ignez de La Cruz (1651-1695), a primeira teóloga da América Latina, das muitas Reformadoras do século XVI, de Eizabeth Cady Stanton que, em 1898, junto com outras mulheres, escreveram a Bíblia das Mulheres a partir de uma apurada leitura crítica da Bíblica que mostrava como a leitura patriarcal servia como instrumento de opressão.
CONIC: E como revertemos isso?
R: Acho que uma forma de reverter isso é exatamente dando visibilidade ao papel de liderança que mulheres exerceram e exercem em suas igrejas, também dar visibilidade às pesquisas que muitas realizaram e realizam. Onde estão as teólogas feministas? Muitas estão, ainda hoje, sofrendo perseguições, sendo ignoradas e algumas até enfrentando as “inquisições sem fogueiras” dentro das próprias igrejas. Felizmente, graças às próprias pesquisas de muitas de nós, que somos herdeiras de uma geração de teólogas e biblistas feministas, muitas destas histórias estão se tornando conhecidas. Aqui quero lembrar o esforço das colegas luteranas que fizeram a pesquisa sobre as Reformadoras, sem falar a importante contribuição nas diversas áreas da teologia com suas pesquisas. Das colegas anglicanas, que além de suas reflexões teológicas de qualidade, nos presentearam em 2019, com a tradução da Bíblia para as Mulheres para que nós conhecêssemos esta produção que foi um marco da hermenêutica bíblica feminista e uma das principais referências na luta das mulheres por cidadania.
Também ressaltar o trabalho das teólogas metodistas, batistas, católicas e pentecostais em desvelar a ação de muitas mulheres que atuam na liderança e na reflexão teológica e que têm sido invisibilizadas.
Se olharmos com atenção, as academias estão cheias de mulheres que se inspiram nas gerações passadas de teólogas e pesquisadoras feministas e que estão produzindo, questionando e buscando desconstruir a tradição teológica patriarcal que nos silenciou durante tantos séculos.
CONIC: Em resumo, pode nos contar como foi o papel das mulheres na IPU no passado, já fazendo um paralelo com o presente?
R: A Igreja Presbiteriana Unida do Brasil (IPU) é um dos ramos mais novos do presbiterianismo no Brasil. Ela foi fundada em 10 de setembro de 1978, após profunda crise dentro da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB). Uma história cheia de acontecimentos marcantes, intolerância, perseguições, dor e sofrimento. O surgimento da IPU se deu a partir de um grupo de pastores e professores da Igreja Presbiteriana do Brasil, que tinham ideias e posicionamentos teológicos considerados demasiadamente progressistas pela direção da IPB.
Algumas comunidades aderiram a seus pastores por solidariedade, mas não compreendiam toda a amplitude do que estava acontecendo. E embora não tomassem parte das instâncias oficiais de decisão da Igreja, as mulheres apoiaram a mencionada ruptura; mesmo quando não entendiam totalmente o que estava acontecendo, não hesitaram em ser solidárias com a liderança de suas igrejas locais.
Constatei também que a grande maioria dos pastores exerciam o ministério pastoral, na recém-criada IPU, apenas em tempo parcial. Isso era compreensível, pois, com a perseguição sofrida dentro da IPB, muitos pastores foram obrigados a buscar outros meios de sobrevivência. Neste sentido, o papel de lideranças femininas foi muito importante, foram elas que, mesmo sem nenhuma preparação teológica, através da sua atuação, resistência e liderança, assumiram a responsabilidade pela preservação e sustento financeiro de muitas comunidades de fé. Importante destacar que, diante do desafio, muitas foram buscar um preparo acadêmico para “bem representar a igreja” nas diversas instâncias das quais IPU participava.
Na minha pesquisa também fui escutar as famílias e ouvi das mulheres e filhos/as histórias de dor, sofrimento e superação. Em alguns casos, estas mulheres tiveram sua privacidade invadida, suas famílias afetadas; elas sofreram em seu corpo e mente, a crueldade do discurso que demonizava quem ousava pensar diferente da hierarquia. Estas mulheres precisaram sobreviver à inquisição a que suas famílias estavam sendo submetidas, muitas precisaram sustentar as famílias quando seus esposos perderam seus empregos sumariamente. Muitas, em sua dor e sofrimento, nem foram bem compreendidas. Senti-me solidária com as lutas daquelas mulheres para preservar a família, a sanidade mental, o trabalho da igreja e, não por último, a própria fé.
Acho que hoje, na IPU, como na maioria das igrejas, as mulheres continuam a exercer grande liderança e ainda são as responsáveis pela sustentação do trabalho em muitas comunidades. É preciso investir em espaços de formação para estas mulheres poderem atuar com mais qualidade, permitindo que possam se apropriar dos instrumentais da teologia feminista e da abordagem de gênero.
CONIC: Dentro do presbiterianismo ainda há muitas fronteiras a serem vencidas no que diz respeito à inclusão da mulher. Qual é, na sua opinião, o maior desafio na atualidade?
R: Sem dúvida. Mas vou focar na IPU, que é meu lugar de fala. Acho que precisamos investir mais em formação e incentivo para que mais mulheres possam, não só assumir o pastorado, mas participar das instâncias de poder. Nos últimos anos percebo que os cargos de direção da IPU têm sido majoritariamente masculinos. Esta constatação não tem a intenção de reivindicar poder ou mérito. Ela pretende recuperar e reafirmar a tradição do movimento de Jesus de Nazaré por um discipulado de iguais, onde se reconhece a dignidade e igualdade de mulheres e homens, crianças, jovens e idosos.
Penso que as mulheres da IPU precisam estar mais empoderadas. Mas, para isto, é necessário favorecer uma formação que também contemple a teologia feminista, discussões de gênero e raça e que abra espaço onde as mulheres possam desenvolver suas potencialidades e reflexões críticas.
Para nós mulheres, independente de tradição de fé, o grande desafio no âmbito religioso é enfrentar os fundamentalismos que continuam a desqualificar o feminismo e a violar os direitos das mulheres, impactando nossas vidas especialmente nas pautas de direitos à saúde reprodutiva. A pauta fundamentalista religiosa é um retrocesso enorme para a vida das mulheres e é sustentada por uma aliança religiosa conservadora que atravessa as mais diversas tradições cristãs. Mas, se há um grande avanço fundamentalista, é preciso ressaltar que as mulheres, como sempre, estão se articulando para a resistência e o enfrentamento. É só perceber o número de coletivos feministas cristãos que se organizaram para enfrentar e resistir a este avanço fundamentalista e isto nos dá esperança.
CONIC: Gostaria de acrescenta algo?
Agradecer à IPU por ter escolhido esta publicação para inaugurar seu selo editorial e ao CONIC por esta visibilidade. Quero convidar mulheres de fé e luta que se engajem e participem da campanha Tire os Fundamentalismo do Caminho! Pela Vida das Mulheres. (colocar o link do face). Uma campanha articulada por organizações feministas, entidades baseadas na fé de matriz cristã, afro brasileiras e indígenas com o objetivo alertar a sociedade sobre os avanços dos fundamentalismos no Brasil e o risco que representam à vida das mulheres.
Foto: Reprodução do livro/Divulgação