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Uma visão Judaica sobre Jesus de Nazaré

Por rabino Alexandre Leone*
 
Jesus de Nazaré foi um judeu que viveu há cerca de 2000 anos na Terra de Israel. Essa afirmação, talvez prosaica, não aponta apenas para a humanidade de Jesus, condição humana comum a todos os homens, mas também para a sua dimensão cultural de judeu, isto é, para o aspecto de proximidade e intimidade de Jesus com outros judeus de hoje ou do passado. 
 
Qualquer judeu reconhece que, no final das contas, ele foi apenas um dos nossos. Aquele que foi mais longe, que chegou “lá”. Certamente um dos que mais se encheu de orgulho a sua mãe. Em outras palavras, os judeus veem Jesus de um ponto de vista radicalmente humano e histórico. Mas é justamente o Jesus histórico aquele que é mais difícil de alcançar, o mais envolvido em um mistério inatingível.  
 
Nas fontes da tradição judaica, a palavra hebraica mashiakh (messias) significa, ao pé da letra, “ungido com óleo”. Essa é uma referência ao rito público pelo qual alguém é designado, apontado e sagrado como rei de Israel ou como sumo sacerdote do Templo de Jerusalém. O termo veio a ser usado na tradição judaica para se referir ao rei que vem restabelecer o reino de David e, assim, realizar a redenção. No judaísmo rabínico, o messias é concebido como o rei de Israel que reina durante a Era Messiânica, imaginada como um tempo futuro de paz e plenitude para toda a humanidade.  Com relação ao povo judeu, a tarefa do messias é conduzir todo Israel a andar nos caminhos da Torá, reconstruir o Templo em Jerusalém e reunir os exilados dispersos de Israel. Contudo, como a redenção humana ainda não aconteceu, como essa era de paz e plenitude ainda não chegou, então, do ponto de vista da tradição judaica o messias ainda não veio. Desse modo, nenhum personagem que tenha sido apontado como messias ao longo dos séculos, nem Jesus de Nazaré, nem David Reubeni, nem Shabatai Tzvi, nem o Rebbe Lubavitch foram o messias tão esperado pela tradição. 
 
Interessante que na literatura rabínica foi desenvolvida a noção mística de que, em cada geração, há sempre alguém que tem o potencial para ser o messias se as condições para a redenção ocorrerem naquela época e naquela geração. A ideia de um rei messias está culturalmente ligada ao tempo em que os monarcas governavam e eram o soberano. Nos tempos recentes, vários autores judeus conceberam a ideia da Era Messiânica como esperança de realização da redenção humana como ação humana coletiva de concerto do mundo (tikun olam). Essa noção de Era da Redenção tem sido mais enfatizada do que a ideia da vinda de um rei messias, que governaria como um monarca da Antiguidade.   
 
A ideia de um homem que seja uma encarnação divina encontrou pouco eco no pensamento judaico ao longo dos séculos. Do ponto de vista judaico, Jesus de Nazaré, assim como qualquer ser humano, é filho ou filha de Deus. Essa expressão alude à santidade e a dignidade de todo ser humano como imagem divina. A noção cristã de Jesus como filho primogênito de Deus liga-se à ideia de Jesus como Logos Divino. O filósofo judeu helenístico Filon de Alexandria parece ter sido o primeiro a cunhar o conceito de Logos Divino a partir da ideia platônica do Demiurgo, isto é, de um intermediário entre Deus e o mundo na criação. Na narrativa da criação, no início do Gênesis, Deus cria o mundo pela palavra. A profecia bíblica é também chamada de palavra divina. Essa palavra foi associada, na tradição judaica, à sabedoria divina. Na literatura apocalíptica de dois mil anos atrás a sabedoria divina foi interpretada como sendo a Torá Celeste da qual a Torá Terrestre é apenas um reflexo. Em diversas passagens na literatura rabínica a Torá Celeste é interpretada como sendo a sabedoria e o modelo que Deus usa para criar o mundo. É interessante que o que a tradição rabínica interpreta como se referindo à Torá, a tradição cristã interpreta como referência a Jesus. 
 
Diferente de Moisés ou dos outros profetas bíblicos, sobre quem a tradição rabínica debate até que ponto as palavras proferidas eram de Deus ou deles, e se somente a mensagem geral seria divina, no cristianismo Jesus é a Palavra, ou seja, isso é diferente do entendimento judaico acerca dos profetas que são meros intermediários entre a Palavra Divina e o povo. O islã é a tradição religiosa que entende Jesus como um profeta. Depois que os livros dos profetas bíblicos foram escritos e se tornaram conhecidos, durante o início do período do Segundo Templo, passou-se a considerar que a profecia tinha acabado em Israel, isto é, nenhum outro livro poderia ser acrescentado àquela coleção sagrada. Se Jesus fosse considerado como um profeta pela tradição judaica posterior, então, o Evangelho teria sido colocado ao lado de Isaías, Amós, Oséias e Jeremias. Contudo, mesmo o Livro de Daniel, por ser um texto tardio, não foi arrolado entre os profetas pelos rabinos. Teria sido bem interessante escutar o Sermão da Montanha ser lido nas sinagogas, caso Jesus tivesse sido considerado um profeta no judaísmo. 
 
Em diversas passagens nos Evangelhos é narrado que Jesus comenta e interpreta versículos da Torá e dos Profetas a seus discípulos. Por isso mesmo ele é chamado por eles frequentemente de “rabi”. Esse termo, que poderia ser traduzido como “senhor meu mestre”, era o mesmo título usado também pelos sábios fariseus, os doutores da Lei, isto é, os primeiros rabinos. Esse era o modo como naquela época os discípulos chamavam seus instrutores na tradição. Jesus comenta a Escritura, a interpreta e a ensina. Desse modo, sua voz se coloca ao lado de outras vozes na polifonia dos interpretes dessa tradição milenar. Contextualizar suas palavras em meio a outros comentadores anteriores ou posteriores a ele, além de aclarar sua relação com a tradição judaica, também parece abrir uma fresta que ilumina, ainda de modo tênue, o misterioso Jesus histórico.  
 
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*Alexandre Leone é rabino do Beit Midrash Massoret de São Paulo. Ele escreveu esse artigo com muito carinho a pedido do CONIC. Gratidão!
Foto: Pixabay

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