Em setembro deste ano, será lançado o curso Cristo por trás dos muros: Teologias e Histórias na Palestina e Israel. A experiência vai apresentar e refletir a questão Palestina a partir de perspectivas históricas e teológicas contextuais e de libertação, isto é, a partir de alternativas às narrativas hegemônicas que ocultam e silenciam alguns acontecimentos sociais, políticos e religiosos.
Para isso, serão propostas (re)leituras históricas, teológicas e bíblicas para se pôr ao lado do Jesus que lá nasceu e que ainda vive: periférico, pobre, minoritário, refugiado e sob ocupação imperial nos corpos palestinos.
Para entender melhor como será essa formação, a equipe de comunicação do CONIC conversou com um dos facilitadores do curso, Wallace Góis (foto acima) - Graduado em Teologia e Filosofia, mestre em Ciências da Religião pela UMESP, pós-graduado em Filosofia Política e do Direito. Professor de Teologia, atuou no setor público e na ONG Koinonia com programas de direitos humanos, saúde e intolerância religiosa. Participou do Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e Israel (EAPPI).
Confira:
Assessoria CONIC: Você é um dos facilitadores do curso "Cristo por trás dos muros: Teologias e Histórias na Palestina e Israel". O que te motivou a trabalhar esse tema?
Bom, para responder a essa pergunta acho que vale contar um pouco sobre mim. Como muita gente no Brasil, eu cresci numa igreja evangélica pentecostal, onde aprendi muito sobre a Bíblia e ouvi narrativas de lugares envolvendo personagens que se tornaram exemplos de fé; histórias de um passado bastante interessante e mensagens muito poderosas para nossa vida hoje. Toda vez que ouvia algum pastor ou irmão que teve o privilégio de visitar Israel, meus olhos brilhavam de vontade de conhecer aquele lugar onde tudo aconteceu e experimentar aquela aura mística que diziam haver por lá, colocar os pés onde grandes milagres e histórias maravilhosas aconteceram.
Enfim, a Terra Santa, o conjunto de lugares por onde passaram e viveram o próprio Jesus Cristo e outras personagens importantes para o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, sempre estiveram na minha imaginação e, me perceber herdeiro dessa fé, também formou minha identidade. Além disso, Israel tem um espaço muito significativo na teologia e nas doutrinas evangélicas (em parte pela influência do protestantismo norte-americana), inclusive os acontecimentos da história recente são vistos como cumprimento das profecias bíblicas que antecedem o fim dos tempos! Ou seja, estamos nos últimos dias e, olhar para Israel nos deixa à par do que o futuro reserva aos que creem nas Escrituras e, de quebra, comprova o quanto suas profecias são confiáveis, pois estão se cumprindo diante dos nossos olhos.
Já na faculdade de teologia e no mestrado em ciências da religião, pude revisitar as passagens bíblicas e dialogar com conhecimentos de várias vertentes do cristianismo, até então, novos para mim. Também avaliar os momentos históricos em que determinadas interpretações surgem e, não necessariamente, me sentir impelido a concordar com elas.
Ouvindo o testemunho de pessoas que estiveram em Israel e na Palestina com o objetivo de conhecer a realidade para além da TV e dos roteiros turísticos, sentia que havia algo, naquela narrativa dominante, que deixou de ser contado. Comecei a me interessar pelo tema e ler as mais diversas perspectivas judaicas, muçulmanas e cristãs, das mais religiosas às mais politizadas e secularizadas. Dessa forma, cheguei ao Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e Israel (EAPPI.org), do Conselho Mundial de Igrejas, que envia voluntários de várias partes do mundo para conhecer a realidade na região, a partir da vivência comunitária em diferentes partes da Cisjordânia e, aos domingos, celebrar ao lado das igrejas palestinas.
Com os acontecimentos recentes entre Israel e Gaza (abril e maio de 2021), muitas notícias, teorias de conspiração, ideias políticas e religiosas reapareceram e começaram a circular, nem sempre com a seriedade que o tema merece. Ao mesmo tempo, existe uma situação concreta que afeta a vida das pessoas, que torna as circunstâncias mais complexas, que aprofundam os problemas políticos, sociais, econômicos, de direitos humanos e, tal como no Brasil, sempre tem aquelas pessoas mais afetadas, em geral as que já estavam fragilizadas. As lutas de lá também ecoam aqui e vice-versa, e estão mais diretamente conectadas do que possam parecer à primeira vista pelas distâncias geográfica e cultural. Aliás, muito do que se produz por lá é comum (e inspirador) para nós daqui e vice versa.
Pensando em contribuir com o debate, escrevemos o curso à várias mãos: as minhas e as do Manoel Botelho, que somos os professores, e as do Flavio Conrado e do Bob Botelho, da Plataforma Intersecções. A proposta é trazer para o Brasil um pouco da leitura teológica que parte da realidade da Terra Santa, feita por várias gerações de cristãos e cristãs que vivem lá, de diferentes confissões, em diálogo com as teologias contextuais latino-americanas e de outras partes do mundo. Queremos contribuir para o debate sobre a situação de hoje, mas, também, revisitar aspectos importantes das histórias e das teologias, da leitura bíblica, da posição que podemos tomar em face dos conflitos e do cenário internacional. A ideia é compartilhar o que vimos, ouvimos, lemos e aprendemos convivendo por três meses na realidade da região, bem como fomentar o debate, especialmente a partir da perspectiva religiosa, mas não só.
Assessoria CONIC: Qual "Cristo por trás dos muros" mais te deixou chocado em Israel e nos territórios palestinos?
Difícil escolher um “Cristo” apenas, porque podíamos vê-lo, ainda menino, nas crianças que davam seu jeito de brincar, mesmo sem acesso ao lazer, à educação e sem ter lugar pra ficar quando nascem; nas mulheres corajosas e religiosas, mas impedidas de ir ao seu espaço de culto; nos homens de luta e disposição, mas que perdem horas preciosas de seu dia na fila para atravessar os checkpoints e poderem trabalhar num país que não os quer lá; na imensa e alegre juventude das periferias e campos de refugiado, mas que não têm emprego nem podem cursar uma universidade; nas sábias e marcadas pessoas idosas que não conseguem atravessar a fronteira para serem atendidas nos hospitais...
Mas, eu poderia mencionar duas cenas muito tristes, que tiveram grande repercussão na mídia, e nas quais pude ver o rosto ferido de Jesus: 1) ao visitar os escombros ainda quentes da casa da família Dawabsheh, numa pacata vila palestina na região de Nablus, um jovem casal, na faixa dos 30 anos, dormia no mesmo quarto que seus dois meninos, um de 4 anos e o outro de 1 ano, quando um terrorista judeu, das colônias israelenses – todas ilegalmente construídas – nos territórios palestinos atirou fogo contra duas casas, inclusive a dessa família. O casal saiu com o menino mais velho, sem conseguir resgatar o bebê das chamas. Apesar de terem recebido atendimento médico, ninguém sobreviveria àquele episódio infernal. 2) Outro caso é o da jovem Hadeel Al-Hashlamon, estudante de 18 anos, morta a tiros por soldados israelenses num checkpoint de Hebrom, acusada de portar uma faca que nunca existiu. Eu estava acompanhando crianças entrarem numa escola próxima, quando ouvi os disparos há cerca de um quarteirão dali. O Renan, outro brasileiro, estava no local e tirou várias fotos que podem ser encontradas em vários sites de notícias na internet.
Assessoria CONIC: De que modo, na sua opinião, esse curso será importante para ampliar a visão cristã da igreja brasileira acerca das problemáticas vividas no Oriente Médio?
O curso procura sair do lugar comum e ir olhar atrás dos muros, atravessar daquele discurso óbvio de “paz e amor” ou de simplesmente justificar histórica, bíblica ou teologicamente que as coisas sempre foram assim e sempre serão. As problemáticas vivenciadas no Oriente Médio, e mais precisamente em Israel e Palestina são atravessadas por questões que nos tocam muito por aqui: racismo, imperialismo, intolerância, injustiça, segregação, questões de gênero, acesso aos bens naturais e aos direitos básicos como alimentação, educação, saúde e tudo mais. Por ser um espaço territorial relativamente pequeno, reproduz muito bem o que se vê em várias partes do mundo, mas com um componente mais específico: tudo ao redor tem um quê de sagrado, tem uma temática religiosa muito presente. As tradições religiosas e o turismo religioso exploram ao máximo a localidade e suas peculiaridades. Há interesses econômicos, atores políticos e potências mundiais envolvidas abertamente. Mas, há também muito de inspiração nas formas criativas de resistência do povo palestino, de coexistência, de solidariedade por parte de judeus, ensaios e projetos de esperança e de paz. Há muito o que aprender, inclusive sobre nós mesmos, enxergando tantas coisas em comum e, ao mesmo tempo, se deparando com modos de vida totalmente distintos.
Assessoria CONIC: Violação de direitos humanos e cristianismo, para muitos, são temas que não "combinam". Qual é a sua análise?
Amar ao próximo, garantir o direito dos pobres, órfãos, viúvas e estrangeiros, poupar a natureza, agir com justiça e misericórdia, repartir o pão, dar descanso ao trabalhador, socorrer pessoas desamparadas, denunciar as injustiças sociais, superar preconceitos... são temas muito frequentes na Bíblia, desde o Pentateuco, passando pelos profetas, pelos livros de sabedoria, pelo Novo Testamento. Jesus encarna, em sua pregação e ações a promoção da vida, do ser humano que reflete a imagem de Deus, criado à sua semelhança. Jesus ensinava a seus discípulos uma velha máxima oriental: não faça a alguém o que não gostaria que fizessem com você. O que hoje chamamos de direitos humanos nada mais é do que a forma moderna dessas noções que já faziam parte da ética do povo da Bíblia e de outras civilizações. A violação de direitos humanos fere diretamente as Escrituras, desrespeita o evangelho, é anticristão.
As teologias palestinas acolhem os direitos humanos, em constante diálogo com as de outras partes do mundo, visando construir novas relações entre a fé e a prática, entre presente e passado e outro mundo possível.
Assessoria CONIC: Muitas pessoas questionam que Israel é uma nação onde a liberdade religiosa é respeitada, enquanto em territórios onde o Hamas está à frente, minorias são perseguidas. Isso é verdade? O que você viu por lá?
Israel é um Estado Judeu, criado para privilegiar um modo de vida específico. Por aí já se pode deduzir que muita gente ficará de fora. Até certo ponto, é inegável que Israel tente reproduzir as noções ocidentais de liberdade, democracia. Contudo, isso funciona melhor se você é um judeu, de preferência ortodoxo e se não opuser a nada. Não sou eu quem falo... essa queixa nós ouvíamos até de judeus “reformistas” e “liberais”, isto é, que tendem a ser mais progressistas em temas religiosos e sociais e, não raro, a criticar ações equivocadas de Israel. Os cristãos tradicionais de tradição ortodoxa, luterana, católica, anglicana, que possuem templos muito antigos, reclamam da contínua diminuição no número de fiéis, na desarticulação das comunidades e nas dificuldades de fazer negócios e trabalhar, que a própria situação de ocupação provoca. Já os evangélicos são proibidos de promover qualquer atividade de proselitismo. O casamento entre pessoas de religiões diferentes é proibido. As políticas de segurança pública e de guerra aplicadas por Israel frequentemente impedem, constrangem, dificultam muçulmanos no acesso às mesquitas. Muita gente que vive nos territórios palestinos jamais foi autorizada a pisar em Jerusalém, conhecida como Cidade Santa pelo islamismo. Inclusive, ações que afetam o acesso da população islâmica à Esplanada das Mesquitas (onde ficam Al-Aqsa e Domo da Rocha, aquela que tem a cúpula dourada), é razão para muitos dos principais protestos, repressões e confrontos entre civis e militares.
Apesar das diferenças religiosas e culturais, é muito raro ocorrerem situações marcantes de desrespeito ou de intolerância entre a maioria muçulmana e as minorias cristãs, seja na Cisjordânia, que está sob a administração da Autoridade Nacional Palestina (Al Fatah), seja na Faixa de Gaza, controlada pelo Hamas que é um partido assumidamente islâmico e conservador em sua ideologia e, por vezes, agressivo em suas práticas. Há grupos e indivíduos isolados que eventualmente agem com intransigência, violência e preconceito, mas não se pode falar em um regime de permanente repressão ou mesmo que assassinato de cristãos ou judeus por motivação religiosa sejam situações comuns.
Mas, os desafios às comunidades cristãs, por serem minoritárias, é bem grande e precisa de apoio das igrejas de outras partes do mundo. Ao mesmo tempo, as restrições impostas pela situação de ocupação militar tornam inviável a vida de todos os palestinos, incluindo as igrejas de exercerem seu culto e religiosidade.
Assessoria CONIC: A identificação de parte da igreja brasileira com as causas do Estado de Israel seria uma contradição? Se sim, na sua avaliação, por qual razão isso acontece?
Sim! E muitas vezes é até fácil de ver. Entre evangélicos, de onde posso falar com mais propriedade, essa simpatia exacerbada por Israel (e por símbolos religiosos judaicos) parece revelar certa crise de identidade e, ao mesmo tempo, uma tentativa de buscar aprofundamento em certas “origens” enquanto se distanciam do catolicismo, que já usa muitos símbolos que remetem ao cristianismo. É comum usarem bandeiras de Israel, estrela de Davi, arca da aliança, kipá, tocar shofar (trombeta)... Até um templo de Salomão já construíram por aqui! Une-se a isso aquilo que eu falava na primeira questão, de associar ao contexto atual a literalidade de textos bíblicos relacionados a Israel. No fim das contas, as pessoas já não sabem mais se estão apoiando Israel porque este nome está na Bíblia ou se concordam com a política daquele Estado fundado em 1948 utilizando inúmeras referências à história dos judeus e daquela região. Esse é um debate que pretendemos aprofundar no curso, inclusive sob a perspectiva de teólogos judeus e palestinos.
Assessoria CONIC: Recentemente, houve uma mudança no governo israelense. Já podemos fazer alguma projeção de como esse novo governo será, ou ainda é prematuro? E em relação ao Hamas, há diálogo possível com o grupo?
Olha, política em qualquer parte do mundo é sempre uma caixinha de surpresas. Quando se trata de Israel, as coisas se complicam um pouco mais. Para começar, direita e esquerda por lá não tem necessariamente a ver com um posicionamento mais favorável ao drama palestino, mas mais com as questões sociopolíticas e econômicas internas a Israel. A mudança de governo foi motivada por disputas partidárias que levaram oposição e aliados a se unirem para tirar do poder a figura desgastada – por escândalos de corrupção e fraude – do conservador Benjamim Netanyahu.
Quando visitei um kibutz na fronteira com Gaza, ouvi de ativistas israelenses pelo direito dos palestinos que o governo se recusava a negociar (oficialmente) com o Hamas, o que provocava ainda mais animosidade. Paradoxalmente, parece que nos últimos tempos o Hamas teve a chance de crescer por algum tipo de diálogo entre eles e Israel, já que a postura combativa era mais fácil de prever e reprimir do que a política do Fatah que, apesar de diplomático e burocrático, é bastante tímido e subserviente aos interesses externos.
Seja como for, a coalisão entre progressistas, representantes árabes e parlamentares judeus ainda mais nacionalistas e à direita que o próprio “Bibi” Netanyahu parece formar um ornitorrinco político que não deve representar grandes mudanças nas políticas colonialistas e segregacionistas de Israel, pelo menos por enquanto. Dois nomes pretendem se revezar na cadeira de premier. O primeiro, Naftali Bennett, tem em seu histórico a conduta de ser frontalmente contra a criação de um estado palestino e de ser entusiasta dos assentamentos judaicos na Cisjordânia.
Assessoria CONIC: Por que um(a) cristão(ã) brasileiro(a) deveria fazer esse curso?
Porque viver o evangelho é ter coragem de viver na verdade, é ter compromisso com a justiça, e a maneira como a igreja evangélica no Brasil conduz o tema atualmente é bastante equivocada para não dizer desonesta, em muitos casos. Eu sei que o momento político e, por sinal, religioso pelo qual temos passado tem sugado muito, senão todas as nossas energias. Pode ser que alguém se pergunte por que deveria acrescentar mais uma demanda, mais uma causa, ainda mais sendo tão distante de nosso país. Entretanto, podemos lembrar da premissa, bastante evangélica, inclusive, de que “Deus amou tanto o mundo que enviou seu filho para que todas as pessoas tenham vida plena”. É esta vida que o texto joanino chama também de “eterna” por estar em comunhão com a Vida de Deus que precisamos comunicar, proclamar, reivindicar, aqui e em toda parte, “à toda criatura”. É engraçado pensar isso olhando para o lugar de onde essa frase foi provavelmente dita. Por aquelas estradas o Nazareno caminhou e deixou rastros, deixou discípulas e discípulos, traduziu em ações a missão que trazia de junto do Pai. Corporificou a compaixão, a graça, a coragem de enfrentar a morte e vencê-la.
A dor de nossos irmãos e irmãs palestinas é nossa também e isso é (ou deveria ser) motivo suficiente. O testemunho de fé que ainda ecoa por lá é nosso também, pois vem em nossa direção e nos alcança. O Espírito é fôlego da criação, foi ele a que Jesus entregou ao Pai na cruz, foi ele que, ressurreto, o Cristo soprou em seus discípulos, que estavam acuados em casa, por medo da perseguição. Esse mesmo Espírito sopra ainda hoje, sopra em nós por aqui e nos fortalece na luta contra tudo que produz a morte, nos faz suas testemunhas “tanto em Jerusalém, como em toda a Judeia e Samaria, e até aos confins da terra”.
Quando nos esforçamos para amar o próximo como a nós mesmos, aprendemos também a amarmo-nos. Olhar para outros “mundos” nos ajuda a entender o nosso próprio, inclusive com mais clareza e nos faz querer dar as mãos, para suportarmos uns aos outros em amor.
Assessoria CONIC: Gostaria de acrescentar algo?
Ah, teria muita coisa para dizer sim, mas não vou dar spoilers (risos). Mas reforço o convite, adiantando que o conteúdo está muito bom e cheio de reflexões bacanas, fotos, testemunhos. Faz sua inscrição, o valor está bem acessível. Divulga entre os contatos, no grupo da igreja, no coletivo, chama aquele amigo que sempre quis ir pra Israel, aquela amiga que sempre desconfiou que a aquela terra não é santa coisa nenhuma... enfim. Te vejo lá! Shalom, Salaam, Paz.
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