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O papel das igrejas na pandemia: a fé cristã não é um amuleto

 
“Seja a tua misericórdia, Senhor, sobre nós, como em ti esperamos” (Sl 33:22)
 
Por: Alexandre de Jesus dos Prazeres¹ e
Cláudio Márcio Rebouças da Silva²
 
Diante de um novo fenômeno social de pandemia do Covid-19, em que tantas incertezas, dores, medos, invadem as nossas casas, suspeitamos que a morte se aproxima querendo fazer amizade. Você quer essa intimidade? Nós, honestamente, não. Ao contrário, pois, como cristãos, acabamos de celebrar a Páscoa do Senhor, ou seja, declaramos com toda força poética uma outra realidade: a vida é maior que a morte. Jesus de Nazaré vive! Aleluia! Vive (também) em nós. “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua grande misericórdia, nos gerou de novo para uma viva esperança, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos” (1 Pedro 1:3).
 
É importante pensarmos que a fé cristã não é um amuleto ou uma muleta como alguns anunciam e ou desejam. Usar versículos isolados em um momento histórico de pandemia como: “o Senhor te guardará de todo mal; ele guardará a tua alma. O Senhor guardará a tua entrada e a tua saída, desde agora e para sempre” (Salmos 121:7-8). E ainda: “nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda. Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos. Eles te sustentarão nas suas mãos, para que não tropeces com o teu pé em pedra” (Salmos 91:10-12), é de uma irresponsabilidade, ingenuidade e desonestidade muito grande. Isso para não falarmos do individualismo exacerbado, pois existe um anúncio da proteção divina para minha família ao mesmo tempo que afirmamos que Deus afastou-se das tendas nas quais a doença já chegou!
 
Com efeito, as narrativas bíblicas expressam inúmeras dificuldades que homens e mulheres experimentaram. Muito sofrimento! O próprio Cristo passou por momentos assim. Foi humilhado, espancado, torturado e morto.  Se formos sinceros, há momentos nesse período de quarentena em que a fé duvidosa só quer o silêncio. Não há respostas! Há desejos e pistas em busca de significados que acalmem nosso coração e nos conceda sono, um pouco de tranquilidade e uma sensação de paz. 
 
Para muitos fiéis, a ida para igreja é expressão de comunhão, fortalecimento, esperança, renovação. Não questionamos aqui as dinâmicas de sociabilidades de resistência, afeto e libertação. A espiritualidade de muitas pessoas precisou ser recriada, pois, para muitos e muitas, a realidade que chamamos de Deus é limitada ao templo e ao cristianismo. Foi preciso compreender que o Deus do templo é o mesmo do cotidiano. Assim, “o Deus que fez o mundo e tudo que nele há, sendo Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens” (Atos 17:24). De fato, devemos lembrar: “ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos?” (1 Coríntios 6:19).
 
Nesse sentido podemos observar duas ações dicotômicas de líderes cristãos em meio a pandemia. Evidente que dentro desses dois lados existem diferentes caminhos, mas de forma pedagógica gostaríamos de sinalizar essas duas vertentes: O uso das redes sociais e aplicativos para realização de cultos, palestras, prédicas, orações, dentre outros elementos litúrgicos; e também a negação do isolamento social, afirmando que os fiéis devem retornar aos templos. 
 
O primeiro grupo buscou redefinir o trabalho pastoral ao acompanhar espiritualmente seus rebanhos diante da pandemia, necessitando então, usar as ferramentas tecnológicas das redes sociais. Cada comunidade foi se reinventado com o desejo de oferecer alento e fortalecimento aos fiéis. Essa é uma nova linguagem que muitos ignoravam e ou não desejavam experimentar. Mas dentro dela as pessoas passaram a realizar “encontros” de oração, aconselhamento, em que o toque ausente fosse pelo menos experimentado virtualmente. Talvez seja por isso que acreditamos não ser uma ação que substituirá o culto presencial. Estamos buscando superar tal contexto, mas ansiosos para o reencontro do abraço, do beijo, do cheiro, do aperto de mão! 
 
É válido ressaltar ainda que as redes sociais também estão sendo utilizadas por esses grupos como forma de arrecadação de alimentos, materiais de higiene e de limpeza, demonstrando o quanto as obras de amor são importantes para a construção do Reino de Deus.  Tivemos o bom exemplo de quem fechou seus templos e os ofereceu as autoridades públicas para que servissem como hospital de campanha, caso a situação chegasse a se agravar, sobrecarregando o sistema de saúde. Reconhecemos, no entanto, que alguns se utilizam da solidariedade para aumentar a credibilidade pessoal e ou institucional, o que infelizmente mata a ideia de justiça social. Estes se esqueceram que Jesus nos ensinou que mesmo quando agimos corretamente, todavia movidos por uma motivação errada, transformamos a boa ação em pecaminosa (Mateus 6:1-18).
 
Por outro lado, ainda falando do uso de meios virtuais de comunicação, confessamos certo cansaço. Muitos cultos online, imenso volume de mensagens enviadas através das redes sociais, dentre estas, diversas interpretando os acontecimentos em termos da ira de Deus sobre a humanidade, outras mesclando interpretações religiosas com ideologia político-partidária. Infelizmente, conforme já esperado, em ocasiões como esta, alguns estão fazendo uso do terror, para que em meio a irracionalidade do estado emocional criado, as pessoas tomem decisões segundo os interesses destes que demonicamente (utilizando um termo tillichiano) desejam possuir a razão e as consciências das pessoas, privando-as de elevar a sua compreensão da realidade.
 
Bem, é preciso sabedoria e discernimento para escutar a voz polifônica de Deus no “barulho” e no “silêncio”. Isso porque, assim como nas liturgias presenciais, é preciso envolver a comunidade, ouvir as demandas, ser sensível o suficiente para compreender que a angústia existe e a fé precisa se fortalecer com entendimento, respeito e amor. As pessoas estão precisando encontrar suas próprias respostas, sentir o agir do Espírito Santo na brisa suave.
 
A segunda ação desenvolvida por alguns grupos evangélicos, a qual está baseada sobretudo na ideia de que não precisamos ficar em casa é de fato a pior opção. Perversa e com interesses que anulam a espiritualidade, essa vertente reforça o cinismo da mercantilização da fé. 
 
No que se refere àqueles que mobilizaram as suas bancadas no legislativo federal para que exigissem a inclusão de igrejas como serviço essencial é significativo indagar: Quais serão as suas reais motivações com isto? Por qual razão negam a necessidade de isolamento social, indo contra a orientação de médicos e de especialistas em epidemiologia? O que estão fazendo os pastores milagreiros, que afirmavam possuir dons sobrenaturais de curas e milagres? Ou será que houve uma diminuição significativa da entrada de dinheiro nesses espaços e, portanto, esses líderes precisam lançar propagandas contra todas as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) como se a dimensão da fé fosse imunizadora? 
 
É até possível entender que existam alguns que interpretem o gesto de se colocar em risco de contágio, não mantendo o isolamento e apregoando a abertura de templos e a realização de cultos, como demonstração de fé e confiança na proteção divina. Esquecem-se, todavia, como bem apontou o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), a fé não imuniza. E que do mesmo modo como Deus “faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir a chuva sobre justos e injustos” (Mateus 5:45) tragédias, doenças, calamidades e perdas atingem a todas as pessoas, não são estes eventos divisores entre maus e bons, justos e injustos. Ao invés de ficarmos especulando sobre o mérito das pessoas afetadas por perdas, poderíamos interpretar a situação de dor e de tristeza como uma oportunidade ofertada por Deus a nós para demonstrarmos empatia, amor e solidariedade. 
 
Esta é uma oportunidade para avaliarmos as nossas próprias consciências, julgando se o modo como estamos interpretando os acontecimentos, não seria, na verdade, projeções em Deus dos nossos preconceitos, desafetos e pontos de vista sobre como as outras pessoas deveriam viver. É mais fácil dizer que Deus está punindo os brasileiros por gostarem do carnaval do que admitir que somos nós que desejamos que as pessoas sejam punidas por não se enquadrarem nos nossos padrões de moralidade e de religião. O mau e o demônio sempre estão com aqueles cuja vida e ações reprovamos.
 
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¹Reverendo da Igreja Presbiteriana Unida (IPU) de Aracaju-SE. 
²Reverendo da Igreja Presbiteriana Unida (IPU) de Muritiba-BA.

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